sábado, 30 de agosto de 2014

Os paradoxos não tão grandes de Marina


Ainda não fiz a leitura a contento do Plano de Governo da candidata Marina Silva, indo e voltando com esmero, mas confesso que fiquei estarrecido com a leitura de alguns eixos. Apreciei alguns, como os 10% do PIB em Saúde, o reconhecimento do papel ínfimo da União no financiamento e responsabilização da educação básica e outros. Mas, quando vistos de forma contextualizada, esses itens deixam de fazer sentido.
Impossível não atestar a inaplicabilidade das metas estabelecidas, além do esvaziamento político de algumas pautas históricas caras aos movimentos sociais, como as da educação. Digo isso pelos princípios macroeconômicos que fundamentam todo o programa, revelando o mesmo economicismo neoclássico que acomete a todos os candidatos midiáticos, com menor intensidade à candidatura do PT e maior ao candidato do PSDB, o qual brada ao mercado financeiro – ente metafísico sem rosto – que Armínio Fraga será seu Ministro da Fazenda caso seja eleito como se pedisse pelo Amor de Deus para que não seja abandonado. Faz todo o sentido. O mercado financeiro escolheu a sua bola da vez: Marina Silva.
Mas que é o mercado financeiro? Segundo o IPEA, são 20 mil famílias que subtraem, para não falar roubam, metade do orçamento da União por meio do pagamento dos juros da dívida pública.
O seu encontro com acionistas, vulgo especuladores, prometendo regras afeitas à fome voraz do mercado financeiro demonstram o estabelecimento de bases firmes em seu programa. Nada contra. Se ela assumiu uma perspectiva neoliberal de Estado Mínimo, é justo, desde que explicite e não seja tratada como uma alternativa nova, porque já experimentamos o remédio amargo das políticas neoliberais, dentre as quais a desindustrialização dos últimos 30 anos e a diminuição do investimento público em direitos sociais e infraestrutura. Não é para menos. Com tantos juros, como sobrar para essas questões pequenas?
A leitura dos eixos 1 e 2 explicita como pornografia que o receituário neoliberal está mais forte do que nunca do programa da Marina Silva.
A política macroeconômica de Marina tem três eixos: 1) controle da inflação; 2) geração de superávit primário; 3) taxa livre de câmbio.
1) trabalhar com metas de inflação críveis e respeitadas, sem recorrer a controle de preços que possam gerar resultados artificiais, e criar um cronograma de convergência da inflação para o centro da meta atual;
2) gerar o superávit fiscal necessário para assegurar o controle da inflação − a médio prazo, os superávits devem ser não só suficientes como também incorporados na estrutura de operação do setor público, de tal maneira que possam ser gerados sem contingenciamentos.
3) manter a taxa de câmbio livre, sem intervenção do Banco Central, salvo as ocasionalmente necessárias para eliminar excessos pontuais de volatilidade, com vistas a sinalizar para o mercado que políticas fiscais e monetárias serão os instrumentos de controle de inflação de curto prazo (p. 43).

Hayek e os Chicaco Boys obtiveram orgasmos tão fáceis que podem ser considerados ejaculações precoces. Para entender os itens acima arrolados, deve-se relacionar com uma notícia recente, o imbróglio entre Giannetti e a Unicamp, mais especificamente a Faculdade de Economia. Pode parecer verborragia acadêmica, mas não é. É didático.
Giannetti envolveu-se em uma polêmica ao defender o ensino pago nas universidades públicas, afirmando que a Unicamp é uma cria da Ditadura. Verdade. A Unicamp é uma universidade que procurou, desde o início, conciliar pesquisa com produção. Aliás, todas as universidades públicas são crias da ditadura, forjadas pela departamentalização da Reforma Universitária de 1968. Mas a crítica não era à Unicamp, mas à Faculdade de Economia e à sua grade ou matriz curricular. Segundo Giannetti, como prova da relação da Unicamp com o regime militar, os economistas da instituição seguiriam referenciais ultrapassados, como o keynesianismo e o marxismo. Luiz Gonzaga Belluzzo, Ricardo de Medeiros Carneiro, André Biancarelli e Pedro Rossi redigiram uma carta de protesto ou repúdio, intitulado Eduardo Giannetti e a intolerância de um liberal.
O problema de Giannetti consiste no fato de que a faculdade priorizaria pensamentos diversos daqueles apregoados pela crença liberal, ou no de desqualificar o pensamento anti-liberal. Diante disso, restou ao liberal defender a instituição de ensino pago nas universidades públicas junto com outro guru liberal de Marina, algo que foi facilmente rebatido por Satafle em artigo que mostra que uma família que ganha R$ 10 mil reais (renda classificada pelo IBGE em pesquisa recente sobre ocupações na cidade de São Paulo como super-ricos) com dois filhos teria que escolher um dos filhos, como acontece no Chile.
  Bem, o preâmbulo foi feito apenas para revelar que a equipe econômica de Marina é repleta da mais intolerante escória do liberalismo, a qual o trata como ato de fé. Mas a fé, como toda crença, é material, e tem relações com a realidade concreta. Defender controle inflacionário de forma estanque e intransigente em uma meta é defender a impossibilidade de se estabelecer uma política que não esteja fora dos marcos do Estado Mínimo, portanto, do liberalismo. Aliás, essa meta inflacionária ninguém vota, supostamente é aferida por medidas técnicas de economistas influenciados pela literatura liberal e pelo mercado financeiro, além dos organismos multilaterais e empresas de avaliação econômica que dão notas aos países, enfim, por uma democracia autocrática que envolve a dita autonomia do Banco Central. Essa meta surge do nada para as novas vidas, mais ou menos como o fetichismo da mercadoria para o indivíduo.
Diante do controle inflacionário, para que serve o Superávit Primário? Superávit Primário é uma economia que o país faz para pagar os juros da dívida pública e honrar os contratos. Mas quem mesmo são os donos dos contratos e os recebedores do bônus da dívida pública? As 20 mil famílias, segundo o IPEA. A verdadeira elite.
Não à toa o respeito ao contrato é a tônica central dos eixos. Ora, mas não vamos poder nem ler os contratos? Fazer uma auditoria, como fez Equador, que atestou que tinha até contrato prescrito? A Marina Silva nunca será confrontada com a sua política econômica pela mídia, simplesmente porque a mídia concorda com a sua política econômica.
 Por fim, o cambio livre. Bem, a discussão sobre o melhor valor do dólar é uma redundância sem fim. O principal é que, quando o dólar sobe os “investidores” adoram. Sim, com as condições brasileiras e o controle das 20 mil famílias sobre o mercado financeiro, não controlar o câmbio significa com o tempo em subida do dólar.  Sem fé liberal, mas achar que tudo é uma relação inversamente proporcional entre oferta e demanda é ingenuidade. Vamos lá ao que sempre acontece: quando os investidores preferem dólar e o compram, o dólar falta no mercado. O valor da moeda sobe e... advinha, a dívida cresce, sim, a mesma dívida que eles recebem por meio dos títulos dos juros.
    Essa política reconhecidamente impede o investimento em políticas públicas e sociais porque o arrocho passa a ser norma da administração pública. Os culpados em seguida passam a ser o servidor público e a “máquina inchada”, ou a “previdência social”, induzindo estruturalmente a reformas que retiram direitos, como o Plano de Complementação Previdenciário para os Servidores Federais no governo Lula/Dilma, ou o arrocho salarial dos aposentados e do salário mínimo na década no governo FHC.
    Ideologicamente o Estado passa a ser o grande vilão, mais ou menos como o é para o Pastor. O Plano de Marina está recheado de chavões como “o governo deixará de ser controlador dos cidadãos, para se tornar seu servidor. Deixará de ver o setor público como o criador da sociedade. O Estado tem de servir à sociedade, e não dela se servir”. Poderia até ser uma frase boa por si, mas com os princípios macroeconômicos explicitados, contextualizando-a, transforma-se em uma frase conservadora.  Bresser-Pereira soltava a mesma pérola no MARE (Ministério da Reforma do Estado) quando qualificava os serviços não-exclusivos do Estado.
    O Plano retoma nas páginas seguintes a mesma ladainha liberal do controle da inflação, autonomia do Banco Central e a restauração da meta inflacionária como horizonte único do órgão e (pérola) a reconquista da “confiança dos agentes no governo e nos dados por ele apresentado”. Ladainha medíocre da mídia e do mercado financeiro, de que um bom governo é aquele que os agentes econômicos – leia-se mercado financeiro – confiam. Contudo, só confiam se implantam os três pilares: controle inflacionário com Banco Central autônomo, superávit primário fiscal e cambio livre.
    A mesma ladainha apregoada pela mídia e o mercado financeiro sobre o baixo crescimento é repetida. Não há crises ou fim de ciclo de crescimento ou de um modelo – o que é uma outra discussão que não é objetivo do presente texto, mas adianto que a alternativa não é o liberalismo mais tosco, velho e carcomido apresentado como o novo à la Collor pelo programa de Marina Silva –, mas somente inadequação de políticas governamentais:
O impacto parece estar mais relacionado à inadequação da gestão das políticas macroeconômicas. Economistas não ligados ao governo, por sua vez, apontam como geradores do descontrole inflacionário os seguintes pontos: elevação do déficit público; perda da credibilidade do setor público em estatísticas relevantes para mostrar preocupação com a inflação; perda de credibilidade das sinalizações de expectativas, pois o teto da meta hoje funciona como a meta efetiva; falta de compromisso do Banco Central, outro componente da perda de credibilidade; e falta de autonomia operacional do BC (p. 45).

         Só que o Plano de Marina vai além. O liberalismo dela é tão incrustado que não vislumbra a intervenção do Estado nos preços, nem subsidiando, pois ela corrigirá “os preços administrados que foram represados pelo governo atual, definindo regras claras quando não existirem” (p. 46). Também propõe a criação de um Conselho de Responsabilidade Fiscal que verifique o cumprimento das “das metas fiscais e avaliar a qualidade dos gastos públicos”.
        Bem, o prefeito que já se deparou com a LRF sabe que a única proibição efetiva que existe é a contratação de servidores, cuja lei o induz a terceirizar, o que vem ocorrendo muitíssimo com pequenos municípios e copiados levianamente por municípios que tem muito dinheiro, como Ribeirão Preto, por exemplo. Não vou entrar no mérito, mas a LRF, com o atual pacto federativo e com um país repleto de municípios pequenos sem orçamento, foi um dos maiores retrocessos de sua história recente, pois permitiu a expansão da hoje enorme rede de prestadores de serviços ao Estado, das Parcerias Público-Privada (PPP) e da queda da qualidade dos serviços públicos.
      Chavões sobre a carga tributária são repetidos acriticamente, como “a carga tributária tem se mantido em nível elevado no Brasil e atingiu mais de 37% do PIB em 2013”, mas não há referência sobre a injustiça dela. Pelo contrário, a carga tributária é quase sempre discutida relacionando-a com a máquina pública federal, em que a carga tributária só diminuirá com o aumento da eficiência da máquina pública. Com isso, resta a promessa:
O mesmo nível de gastos deverá gerar mais e melhores serviços. Vamos ampliar significativamente a produtividade da máquina a fim de equipará-la à taxa média dos países desenvolvidos. Se conseguirmos que o aumento da arrecadação per capita no país fique abaixo do crescimento do PIB per capita, reduziremos a carga tributária e aumentaremos os serviços prestados à população. Somando-se isso à elevação da produtividade do setor público − incluindo aí o combate à sonegação −, ampliaremos os serviços de forma sensível, mesmo com menor carga tributária e com decréscimo da participação da receita do governo no PIB (p. 19).

  Há uma pequena seção na página 16 destinada à Justiça tributária, mas não há qualquer menção enfática ao fato de se fazer uma reforma tributária que taxe mais os ricos dos que os pobres, mas um termo que o plano chama de “equidade na distribuição de recursos públicos”. A menção é sobre uma taxação que impeça a guerra fiscal entre estados e municípios.  Na página 51 há uma seção para a Reforma Tributária, mas o título já evidencia o alcance reduzido: “Reforma tributária: compromisso com a não-elevação da carga e com a justiça; redução dos impostos sobre faturamento de empresas; desoneração de investimentos; desarme da guerra fiscal”. Portanto, a reforma tributária defendida privilegia os ricos.

    Bem, poderíamos afirmar que tal perspectiva fica reduzida à política macro-econômica, deixando as políticas públicas isentas ou intocadas. Não, é impossível. Se há preponderância dos ditames do mercado financeiro, é obvio que o arrocho vai para as políticas públicas.



Não precisa ser um Holmes para entender. Se aumentar o comprometimento orçamentário com os títulos dos juros da dívida pública, tem que retirar de algum canto. Pelo esquema acima, não é difícil entender porque a Previdência é sempre um problema, um déficit perpétuo. Costuma ser nesse momento que os mesmos economistas aparecem com as suas metáforas de “lençol curto” ou “pensar como uma dona de casa”.
  Mas é preciso salientar que a ideologia do Estado Mínimo está também em alguns programas sociais. Vejamos educação. Na educação, o Estado Mínimo se expressou pelas políticas gerenciais, em que os professores são avaliados por dados quantitativos comparáveis dos alunos, no qual o docente transforma-se em um ser heterônomo, dependente das avaliações do Estado. Esse tipo de modelo destrói qualquer perspectiva de trabalho coletivo e participação da comunidade escolar, sobretudo quanto ao processo de empoderamento.
     Bem, logo de início leio no programa da educação:
Criar uma política de responsabilização por resultados da educação, aperfeiçoando os indicadores que compõem o Sistema Nacional de Avaliação da Aprendizagem da Educação Básica.
Estabelecer medidas múltiplas de qualidade para incluir novos indicadores relativos à escola, aos professores e aos alunos.
Analisar e monitorar os instrumentos de avaliação para efetuar os ajustes e redirecionamentos necessários (p. 102).

  Criar uma política de responsabilização por resultados, um mecanismo ranqueador e barato de estimular a competitividade de notas e frequência é justamente o oposto o que defende os movimentos sindicais e sociais da educação. Diga-se de passagem, boa parte do texto sobre educação direciona-se à gestão e, quando direciona para os professores, debatendo o combalido salário docente, o Plano, coerentemente com os princípios do Banco Mundial e com a sua linha liberal, propõe o bônus nacional. Isso mesmo, o bônus nacional. A União complementaria o salário, mas como conseqüência da avaliação. Tá aí uma política de responsabilização.

Compor o valor final do salário de duas formas. A primeira metade da majoração salarial será implantada gradualmente, na proporção do crescimento do orçamento federal para educação em relação ao PIB, em conformidade com o PNE. A segunda metade será vinculada ao cumprimento de metas de desempenho em sala de aula, aos resultados do Exame Nacional para Docentes, à participação em cursos de formação continuada e à docência em escola integral (p. 110).

  Em outras palavras, o Plano propõe a implantação nacional do bônus por meio da criação de uma Prova Nacional para Docentes. Ou seja, a avaliação do docente não é feita no seu local de trabalho, com participação da comunidade escolar, contextualizando o seu trabalho. É feito por uma prova, nos mesmos moldes da política educacional do PSDB no Estado de São Paulo. Com coerência teórica incrível, o gerencialismo também se faz presente na escolha de diretores. A escolha de diretores e coordenadores dar-se-ia por meio de processo que “incentiva” (sim, esse é o termo) a participação das comunidades, mas a escolha seria através de “um comitê para identificar profissionais e provas de seleção”. As empresas prestadoras de serviço em educação para municípios (são mais de 5.000, imagine) estão pulando de alegria.
   Essas são algumas das contradições encontradas. Foquei na relação economia e educação porque sou da área, mas isso poderia ser tranquilamente transpassado para a sua política externa, quando ela objetiva a aproximação com a Aliança do Pacífico, uma espécie de resto da Alca criada em 2012 pelos países latino-americanos que os liberais contrapõem à UNASUL e ao Mercosul. A bem da verdade, sinto por muitos militantes que estão sendo enganados por essa ladainha liberal, mas o plano é honesto e translúcido. É liberal em essência, do começo ao fim, sem tirar nem por. Pode ser que avance em alguns pontos, mas a essência é a Reforma Gerencial atrelada ao Estado Mínimo, que vai de promessas a pagamento de mensalidades em universidades a bônus para professor de educação básica. Nesse sentido o plano é honesto, pois ele se propõe a diminuir o Estado através de uma política de resultados e metas.
     Marina Silva pode até ter se confundindo no debate com o termo elite, como muitos querem acreditar, mas que o programa dela é de elite, não há a menor dúvida.


L.F.S.


        


terça-feira, 6 de maio de 2014


A histeria do linchamento

Relutei em escrever esse texto. Relutei porque confesso que mexeu com o que de há mais primitivo em mim. Consegui reprimir-me no caso do preto amarrado no poste, do preto doido linchado e morto, da preta favelada arrastada por policiais, mas da parda que teve um dia de preta não teve jeito. Acumulou!

Quando voltava do trabalho agora, pensando no acúmulo, vi um velho preto remexendo o lixo na rodoviária, às 22h45m. Andei até o carro de minha esposa, que me esperava, e um branco maltrapilho pediu-me um real para completar uma marmita. Alertei-o de boa-fé que teria dificuldade de encontrar comida no horário. Ela desconfiou que eu estivesse desconfiando dele e disse que não gastaria em “bobagens”. Pegou o um real e saiu correndo na direção do restaurante onde disse que estaria aberto. Virei e entrei no carro de minha esposa. Sentei.

Quanta violência. O homem falou bobagens porque pensou que eu tivesse insinuado que usaria em drogas. Como deve ser difícil pedir esmola nesse mundo cristão.  Voltei meus pensamentos ao acúmulo. É um acúmulo, mas esse último caso me chamou a atenção pelos fatores envolvidos.

Vamos aos fatores.

Primeiro fator: uma mulher é acusada de raptar crianças para fazer “magia negra”. Não pude deixar de pensar no papel da “magia negra” no caso. Não pude deixar de pensar que a “magia negra” cumpriu um papel importante para o ato, pois se a mulher supostamente estivesse recrutando crianças para evangelizar, tendo a achar que ela não seria espancada. Mas o que seria “magia negra”? Magia negra é o nome que o cristianismo delegou às religiões de matriz africana. A rigor, para um bom cristão, qualquer coisa que verse com qualquer crença ou ritual de religiões de matriz africana, é “magia negra”. Isso me faz concluir que boa parte dos assassinos era composta por bons cristãos.  Note-se que “magia negra” é algo tão sub-reptício quanto à “bruxaria” na Idade Média.  Note-se que o mesmo comportamento não é visto com as denúncias, muitas comprovadas, sobre os padres pedófilos.

Segundo fator: todos os bons cristãos ficaram sabendo da atitude pecadora da mulher por meio de uma página no facebook, chamada Guarujá Alerta. O nome me chamou a atenção. Alerta, como nos programas policialescos da televisão aberta.  Os exemplos são muitos, sendo o mais conhecido o programa Cidade Alerta. Mas não podemos esquecer o Brasil Urgente, no caso, sinônimo de alerta. Não sei o que se costuma publicar nessa página, mas o nome me passa a impressão que a página tem a função de alertar à população do que é ruim. E o que seria ruim? Crimes, ou supostos crimes. Mas não é só isso. Alertar à população boa sobre o ruim, alertá-la para que a bondade da família continue intacta.

Terceiro fator: o assassinato foi gravado. Isso, antes de qualquer coisa, revela o sentimento não somente da impunidade, mas o da certeza da correção, qual seja, o de que a lição pseudopopular seria comungada por todo e qualquer brasileiro, normalmente bom cristão, que adora a justiça com as próprias mãos e compra um cantinho no céu a suaves prestações. O sentido é o de bom e justo, caso contrário não se gravaria, caso contrário, a população impediria o massacre, porque o justo passaria a ser o contrário.

Como os três fatores se relacionam? Bem, os bons cristãos acham que o mundo está tomado de injustiça e de pecado e se autoproclamam, como bons guerreiros templários, guardiões da moral e dos bons costumes, saindo de armas em mãos atrás dos injustos e pecadores. Criam patrulhas de moralização social, mais ou menos como a Liga das Senhoras Católicas antes de 1964, e as materializam em programas e páginas no facebook, onde o objetivo é alertar os bons cristãos das injustiças e dos pecados, denunciando, quando possível, os injustos e os pecadores. Como um bom cristão, tal qual um que grita mais para o carrasco que desmembra algum pecador no pelourinho, vai para a ação, grita morte, adora o sangue a escorrer e a misturar-se na terra, e berra, mais, mais, mais. Morrer de uma vez? Não, morrer aos poucos, linchada, sofrendo as dores do pecado (ai Foucault).

Registrar? Lógico. Registrar e retransmitir na internet garante o sentimento de pertença e, pelo exemplo, transmite poder ao ato de forma ininterrupta.  Não há mais necessidade de praça ou pelourinho (ai Foucault).

Esse último caso me fez entender melhor o processo de “justiça com as próprias mãos”, como dizem os defensores, mais ou menos como os milicianos se qualificavam e se qualificam, como grupos de defesa cidadã contra os traficantes. Falarmos hoje em mediévico não é figura de linguagem muito menos retórica vazia. É fato! Hoje, só faltou o Malleus Maleficarum

Esses bem feitores ignoram toda e qualquer circunstância que poderia dar-lhe algum princípio racional, ainda que de maneira infantilizada, como o fato de nunca propor linchamento sozinho, ou nunca procurar linchar um traficante ou um policial corrupto. Aliás, passa bem longe, como bom covarde. Ignora que comete pecados às sextas-feiras, apesar de suavizá-los com as prestimosas prestações e lamentações aos domingos. Ignora que não possui provas. Ignora que deve chamar a polícia, se possuísse provas. É um ignorante, não menor do que o ignorante que o defende, como Sheherazade e Cia LDTA.

Mas não é uma questão que se explica somente através dos linchadores. Eles foram alertados, não somente pela página, mas pelos inúmeros programas que os alertam de uma violência que é maior na consciência e subconsciência deles do que na realidade, mesmo que exista e seja alarmante. Aliás, é uma das benesses da televisão. Potencializar a realidade, mesmo que seja mais amena. Potencializar a percepção da violência que grassa nas cidades, transformando o próprio programa em realidade, em um ato ou em uma ode à violência.

Na prática, é um pacto social, cuja subjetividade aponta os canhões para todo e qualquer pecado, ou melhor, para quem o aparenta. Quanto mais preto e pobre, mais ameaçador. Se for traficante ou policial corrupto, a covardia o paralisa, melhor fechar os olhos e rezar. Essa ignorância medieval é seletiva. A nova ordem transforma o diferente em ameaça e, se o diferente estiver sozinho e a ordem em grupo, o grupo elimina o diferente, como um bom skinhead neonazista, mesmo que o grupo seja composto por pretos e pardos favelados.

Vivemos tempos perigosos de caça aos homossexuais, caça aos negros, caça aos pobres, caça aos adeptos de religiões de matriz africana, como o caso das casas de candomblés e pais e mães de santo caçadas no Rio de Janeiro. A bem da verdade, passamos essa fronteira de simples perseguição às minorias. Hoje se caçou uma suspeita de ser bruxa.

L.F.S.


quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Hitler e Cabral: o que há de semelhança entre Anne Frank e Amarildo?




 


Depois da publicação e da veiculação do resultado do inquérito policial sobre Amarildo, incriminando 10 policiais, a questão agora deve se voltar ao projeto da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) e o que ele representa. Por que não dá para defender o projeto UPP? O caso Amarildo revela a essência do Estado. Revela a existência dos hiatos entre a existência mundana de um pedreiro e a promessa da felicidade humana vendida no projeto da UPP. O caso Amarildo deve ser entendido para além da visão tecnocrata aparentemente humanista do secretário pop de segurança e do governador playboy da gangue do travesseiro. O caso Amarildo revela o que é a UPP, a principal política governamental carioca, que não é a educação, neste exato momento em greve e com uma professora morta por gás lacrimogênio. Pode-se dizer que não dá para defender a UPP ou as intervenções militares feitas por todo o Brasil porque há uma semelhança cruel entre Amarildo e Anne Frank:

1) Amarildo, segundo versão policial, foi confundido com um traficante. Ok. Entretanto, qual traficante, qual é o nome dele, cadê a foto, por que foi confundido? Por que não foi apresentado o fundamento do erro? Por que a foto do traficante procurado supostamente parecido com Amarildo não se tornou pública? Enfim, qual é o teor da confusão, porque, se foram confundidos, o Estado através da figura do secretário pop deve explicitar o teor da confusão, o tipo e os motivos. Se não houve confusão como o inquérito policial agora mostra, por que essa dúvida não foi dissipada logo no início? Simples: por que esse é o modus operandi da polícia nas intervenções nos morros cariocas, para as quais sempre há a figura do traficante incógnito para explicar todas as execuções.

2) Eu não sou especialista, mas quando sou abordado por um policial menos truculento, este pega meu documento e confere, via rádio, com uma central. Isso foi feito? Se sim, então qual foi a confusão da central ou entre a central e o policial? Por que o Estado não apresentou o que poderia ter confundido os policiais? As respostas a essas perguntas simples já apontariam, com mais realidade, os culpados, independente da investigação supostamente científica exposta em modus pollens e modus tollens em algum papel timbrado. O incógnito e a não investigação das explicações estúpidas, sob o beneplácito da cúpula de segurança e governadores, é a essência da intervenção terrorista do Estado.

3) Supondo que houve de fato uma confusão (sic!) e que o inquérito policial esteja todo equivocado (sic!), uma ilegalidade absurda foi impetrada. Defendo o fim da polícia militar e a reforma completa de todas as polícias, mas vou seguir alguns argumentos daqueles que defendem as policias como estão. Quando alguém vai para averiguação de algo, seja lá o que for, ele deve ir, segundo legislação vigente, à delegacia, a fim de prestar esclarecimentos ao delegado de plantão, um civil. Polícia militar, e Unidade de Polícia “Pacificadora” é uma organização pertencente a Policia Militar do Rio de Janeiro, é uma unidade estatal ostensiva, e não investigativa. Por que Amarildo foi levado a uma unidade militar? Por que isto não está sendo devidamente questionado? Seria essa prática pertencente ao universo das intervenções militares no Rio de Janeiro? Seria essa prática fundamental para a sobrevida das UPPs? Seria uma prática universal das UPPs que somente agora foi possível vê-la de forma clara e distinta? Sim, pois a UPP pressupõe em sua organização o controle total do território, mais ou menos como um traficante do CV.

4)  Então, ao invés de ser encaminhado para uma delegacia, Amarildo foi encaixotado e levado para uma unidade da própria UPP. Sem direito a advogado, telefonema ou qualquer possibilidade de comunicação externa, submetido às regras truculentas do meio militar, ele foi “averiguado” por policiais militares. Pode policial militar realizar averiguações de caráter investigativo? Pode realizar perguntas com o objetivo de investigar algo de forma mais profunda? Partindo do pressuposto de que houve a confusão, até que ponto perguntas dentro de uma unidade militar não se configuram em interrogatório policial, prerrogativa da policia civil? Qual é o limite, ou a UPP vive da ausência dessa linha demarcatória e, portanto, se faz totalitária em um morro? E as respostas óbvias a essas perguntas simples que um abitolado que defende a polícia militar como ela atualmente é revelam que a UPP pressupõe o controle total, sobretudo sobre os moradores.

5) Ocorreram dois casos muito famosos em São Paulo em 2010, que foram os casos de Alexandre Menezes dos Santos e Eduardo Pinheiro dos Santos, ambos motoboys, levados para unidades da PM-SP, onde foram torturados e mortos. Naquele momento, o governador Goldman proibiu essa prática, pelo visto comum no Rio de Janeiro, afastou os comandantes e pagou imediatamente indenização aos familiares. http://www.saopaulo.sp.gov.br/usr/share/documents/164.pdf. Achei, ingenuamente, que seria uma ação pertencente a um conjunto de medidas que objetivariam controlar a polícia, já que nenhum governador a controla de fato, seja porque polícia no Brasil virou um negócio rentável que vai de eleições sindicais, extorsão de traficantes através de sequestro de familiares, roubo de cargas à segurança de alto padrão, seja porque os governadores e seus séquitos participam de alguma forma dos negócios, nem que seja através do dividendo dos noticiários de enfrentamento direto, passando a impressão de que a polícia age energicamente contra o crime que ela mesma participa. As chacinas de grupos de extermínio no começo de 2013 desmentiram minha crença.

6)  Por que, após o ocorrido, o ex-comandante chorão que é também cidadão e chincha abertamente a mídia a seguir versão militar sobre as manifestações declarou que Amarildo foi morto por traficantes, se ele é militar e quem deve concluir isto é um delegado civil? Por que isso virou, no primeiro momento, linha de “investigação” prioritária, se, em tese, a polícia é suspeita, e a família – testemunha como atestam as imagens – dizia o contrário? O que dizer sobre a tentativa do antigo delegado de incriminar Elizabeth pelo assassinato do marido, afirmando que os dois eram traficantes, algo parecido com o que foi feito com a engenheira desaparecida em um túnel?

7)  Como se pode defender um projeto de intervenção estatal em comunidades pela via unicamente militar? O termo pacificação não é um termo humanista, mas sim militar, utilizado por agrupamentos militares após a invasão por terra, ar e/ou mar. http://www.revistahabanero.org/v4/2013/08/22/vamos-falar-de-pacificacao-2/. Se foi usado pelos EUA no Iraque, pelos Nazistas na Polônia ou pela banda da especulação imobiliária no Rio de Janeiro constitui-se em detalhe meramente geográfico. É uma organização que tem acesso a todas as casas, sem mandado judicial, que pode “averiguar” a todos em qualquer situação e que tem ainda, como está evidenciado, acesso até mesmo às câmeras de segurança instaladas no morro, ao GPS dos carros e demais mecanismos de controle. Como se pode defender uma organização que, na prática, substitui os traficantes com a mesma sangria e métodos, como atesta os números dos desaparecimentos antes e depois das UPPs?
DESAPARECIMENTOS ANTES E DEPOIS DAS UPPS
UPP
ANO ANTERIOR
ANO DA INAUGURAÇÃO
ANO SEGUINTE
Santa Marta (2008)
1
0
1
Cidade de Deus (2009)
18
16
49
Batan (2009)
5
3
2
CM/Babilônia (2009)
1
2
0
Pavão-Pavãozinho (2009)
5
6
6
Tabajaras/Cabritos (2010)
4
4
3
Providência (2010)
7
5
5
Borel (2010)
2
12
9
Formiga (2010)
1
3
5
Andaraí (2010)
5
3
6
Salgueiro (2010)
2
2
3
Turano (2010)
9
4
5
Morro dos Macacos (2010)
2
3
7
São João (2011)
2
1
3
Fallet/Fogueteiro (2011)
4
2
2
Morro dos Prazeres (2011)
3
3
6
São Carlos (2011)
8
4
9
Mangueira/Tuiuti (2011)
6
4
12
TOTAL
85
77
133

8) Como se pode defender uma organização estatal que se mostra totalitária porque pode tudo sem prestar contas, e ainda zomba da situação, como registra a companheira de Amarildo? Como defender uma organização que ameaça a família que busca o paradeiro de Amarildo? Como se pode defender uma organização que, até 14 de julho, era responsável pela permissão de eventos culturais, artísticos e de lazer, segundo Resolução 13/2007, o que na prática proibiu quase todos os eventos realizados antes da ocupação? https://s3.amazonaws.com/meu-rio-production/Resolucao+SESEG+013+-+23.01.2007+-+atuac%CC%A7a%CC%83o+o%CC%81rga%CC%83os+de+Seguranc%CC%A7a+em+eventos+divertimento+pu%CC%81blico.pdf Como se pode defender uma organização que manda prender, soltar, bater e matar, como um reles traficante?

9) Todo esse descalabro de procedimentos e práticas revela que, mesmo ela “prove” no final do processo (sic!) que não foi um policial que puxou o gatilho, fica a constatação de que, no mínimo, foi a policia que mirou e ordenou que o gatilho fosse puxado ou ela puxou junto (ela puxou!). O caso Amarildo expõe a política dos desaparecimentos, a política do genocídio financiada e executada pelo Estado, que institucionalmente se expressa na farsa dos autos de resistência. http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,amarildos-onde-estao,1067443,0.htm. Todo esse descalabro legal de procedimentos releva, no fundo, uma ordem institucional de procedimentos cujo intuito é o genocídio, o cerceamento e a limpeza social, com evidente relação com os eventos esportivos e os interesses da especulação imobiliária. Não esqueçamos a proposta feita de cercar 11 favelas. http://nossorio.wordpress.com/2009/04/07/muro-do-cabral-ou-campos-de-concentracao-ou-auschwitz-a-solucao-final/
 
10)  Ao não responder essas questões, ao silenciar-se sobre o conteúdo e forma da confusão de policiais entre Amarildo e o suposto traficante, ao silenciar-se sobre a totalização da vigilância e controle militar sobre as comunidades, ao silenciar-se sobre a intervenção policial que leva o “suspeito” à unidade militar e não à delegacia civil, ao silenciar-se sobre o caráter de um interrogatório (convenhamos que não existe averiguação sem interrogatório) realizado por policiais militares dentro de um batalhão militar sem direito do interrogado ao mundo externo, inclusive o de não ser torturado (desculpe-me, mas um pobre, preto e favelado dentro de uma unidade militar rodeado por policiais militares sem acesso a ninguém é picanha para pitbull), o secretário pop tecnoburocrata, que paga de humanista em corridas financiadas pelo governo para fazer propaganda das UPPs, e o governador gangstar, estrela decadente da quadrilha do travesseiro, também puxaram o gatilho, e continuam sadicamente a puxá-lo. Eles mataram Amarildo porque construíram uma política militarista e fizeram propagandas e mais propagandas com o militarismo sádico que sacia aqueles que acreditavam em um novo Rio de Janeiro. Eles mataram Amarildo da mesma forma que Hitler matou Anne Frank, mesmo que Anne não tenha morrido por uma bala. Eles mataram Amarildo porque tudo o que o Estado fez naquela noite o levou à morte, ou melhor, tudo o que o Estado fez o matou!!! O Estado continua matando Amarildos!!! As perguntas corretas hoje são “Onde está Cabral?” e “Onde está Beltrame?”. Eles precisam ir a Nuremberg!!! E que não levem como testemunha o Freury!