quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Hitler e Cabral: o que há de semelhança entre Anne Frank e Amarildo?




 


Depois da publicação e da veiculação do resultado do inquérito policial sobre Amarildo, incriminando 10 policiais, a questão agora deve se voltar ao projeto da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) e o que ele representa. Por que não dá para defender o projeto UPP? O caso Amarildo revela a essência do Estado. Revela a existência dos hiatos entre a existência mundana de um pedreiro e a promessa da felicidade humana vendida no projeto da UPP. O caso Amarildo deve ser entendido para além da visão tecnocrata aparentemente humanista do secretário pop de segurança e do governador playboy da gangue do travesseiro. O caso Amarildo revela o que é a UPP, a principal política governamental carioca, que não é a educação, neste exato momento em greve e com uma professora morta por gás lacrimogênio. Pode-se dizer que não dá para defender a UPP ou as intervenções militares feitas por todo o Brasil porque há uma semelhança cruel entre Amarildo e Anne Frank:

1) Amarildo, segundo versão policial, foi confundido com um traficante. Ok. Entretanto, qual traficante, qual é o nome dele, cadê a foto, por que foi confundido? Por que não foi apresentado o fundamento do erro? Por que a foto do traficante procurado supostamente parecido com Amarildo não se tornou pública? Enfim, qual é o teor da confusão, porque, se foram confundidos, o Estado através da figura do secretário pop deve explicitar o teor da confusão, o tipo e os motivos. Se não houve confusão como o inquérito policial agora mostra, por que essa dúvida não foi dissipada logo no início? Simples: por que esse é o modus operandi da polícia nas intervenções nos morros cariocas, para as quais sempre há a figura do traficante incógnito para explicar todas as execuções.

2) Eu não sou especialista, mas quando sou abordado por um policial menos truculento, este pega meu documento e confere, via rádio, com uma central. Isso foi feito? Se sim, então qual foi a confusão da central ou entre a central e o policial? Por que o Estado não apresentou o que poderia ter confundido os policiais? As respostas a essas perguntas simples já apontariam, com mais realidade, os culpados, independente da investigação supostamente científica exposta em modus pollens e modus tollens em algum papel timbrado. O incógnito e a não investigação das explicações estúpidas, sob o beneplácito da cúpula de segurança e governadores, é a essência da intervenção terrorista do Estado.

3) Supondo que houve de fato uma confusão (sic!) e que o inquérito policial esteja todo equivocado (sic!), uma ilegalidade absurda foi impetrada. Defendo o fim da polícia militar e a reforma completa de todas as polícias, mas vou seguir alguns argumentos daqueles que defendem as policias como estão. Quando alguém vai para averiguação de algo, seja lá o que for, ele deve ir, segundo legislação vigente, à delegacia, a fim de prestar esclarecimentos ao delegado de plantão, um civil. Polícia militar, e Unidade de Polícia “Pacificadora” é uma organização pertencente a Policia Militar do Rio de Janeiro, é uma unidade estatal ostensiva, e não investigativa. Por que Amarildo foi levado a uma unidade militar? Por que isto não está sendo devidamente questionado? Seria essa prática pertencente ao universo das intervenções militares no Rio de Janeiro? Seria essa prática fundamental para a sobrevida das UPPs? Seria uma prática universal das UPPs que somente agora foi possível vê-la de forma clara e distinta? Sim, pois a UPP pressupõe em sua organização o controle total do território, mais ou menos como um traficante do CV.

4)  Então, ao invés de ser encaminhado para uma delegacia, Amarildo foi encaixotado e levado para uma unidade da própria UPP. Sem direito a advogado, telefonema ou qualquer possibilidade de comunicação externa, submetido às regras truculentas do meio militar, ele foi “averiguado” por policiais militares. Pode policial militar realizar averiguações de caráter investigativo? Pode realizar perguntas com o objetivo de investigar algo de forma mais profunda? Partindo do pressuposto de que houve a confusão, até que ponto perguntas dentro de uma unidade militar não se configuram em interrogatório policial, prerrogativa da policia civil? Qual é o limite, ou a UPP vive da ausência dessa linha demarcatória e, portanto, se faz totalitária em um morro? E as respostas óbvias a essas perguntas simples que um abitolado que defende a polícia militar como ela atualmente é revelam que a UPP pressupõe o controle total, sobretudo sobre os moradores.

5) Ocorreram dois casos muito famosos em São Paulo em 2010, que foram os casos de Alexandre Menezes dos Santos e Eduardo Pinheiro dos Santos, ambos motoboys, levados para unidades da PM-SP, onde foram torturados e mortos. Naquele momento, o governador Goldman proibiu essa prática, pelo visto comum no Rio de Janeiro, afastou os comandantes e pagou imediatamente indenização aos familiares. http://www.saopaulo.sp.gov.br/usr/share/documents/164.pdf. Achei, ingenuamente, que seria uma ação pertencente a um conjunto de medidas que objetivariam controlar a polícia, já que nenhum governador a controla de fato, seja porque polícia no Brasil virou um negócio rentável que vai de eleições sindicais, extorsão de traficantes através de sequestro de familiares, roubo de cargas à segurança de alto padrão, seja porque os governadores e seus séquitos participam de alguma forma dos negócios, nem que seja através do dividendo dos noticiários de enfrentamento direto, passando a impressão de que a polícia age energicamente contra o crime que ela mesma participa. As chacinas de grupos de extermínio no começo de 2013 desmentiram minha crença.

6)  Por que, após o ocorrido, o ex-comandante chorão que é também cidadão e chincha abertamente a mídia a seguir versão militar sobre as manifestações declarou que Amarildo foi morto por traficantes, se ele é militar e quem deve concluir isto é um delegado civil? Por que isso virou, no primeiro momento, linha de “investigação” prioritária, se, em tese, a polícia é suspeita, e a família – testemunha como atestam as imagens – dizia o contrário? O que dizer sobre a tentativa do antigo delegado de incriminar Elizabeth pelo assassinato do marido, afirmando que os dois eram traficantes, algo parecido com o que foi feito com a engenheira desaparecida em um túnel?

7)  Como se pode defender um projeto de intervenção estatal em comunidades pela via unicamente militar? O termo pacificação não é um termo humanista, mas sim militar, utilizado por agrupamentos militares após a invasão por terra, ar e/ou mar. http://www.revistahabanero.org/v4/2013/08/22/vamos-falar-de-pacificacao-2/. Se foi usado pelos EUA no Iraque, pelos Nazistas na Polônia ou pela banda da especulação imobiliária no Rio de Janeiro constitui-se em detalhe meramente geográfico. É uma organização que tem acesso a todas as casas, sem mandado judicial, que pode “averiguar” a todos em qualquer situação e que tem ainda, como está evidenciado, acesso até mesmo às câmeras de segurança instaladas no morro, ao GPS dos carros e demais mecanismos de controle. Como se pode defender uma organização que, na prática, substitui os traficantes com a mesma sangria e métodos, como atesta os números dos desaparecimentos antes e depois das UPPs?
DESAPARECIMENTOS ANTES E DEPOIS DAS UPPS
UPP
ANO ANTERIOR
ANO DA INAUGURAÇÃO
ANO SEGUINTE
Santa Marta (2008)
1
0
1
Cidade de Deus (2009)
18
16
49
Batan (2009)
5
3
2
CM/Babilônia (2009)
1
2
0
Pavão-Pavãozinho (2009)
5
6
6
Tabajaras/Cabritos (2010)
4
4
3
Providência (2010)
7
5
5
Borel (2010)
2
12
9
Formiga (2010)
1
3
5
Andaraí (2010)
5
3
6
Salgueiro (2010)
2
2
3
Turano (2010)
9
4
5
Morro dos Macacos (2010)
2
3
7
São João (2011)
2
1
3
Fallet/Fogueteiro (2011)
4
2
2
Morro dos Prazeres (2011)
3
3
6
São Carlos (2011)
8
4
9
Mangueira/Tuiuti (2011)
6
4
12
TOTAL
85
77
133

8) Como se pode defender uma organização estatal que se mostra totalitária porque pode tudo sem prestar contas, e ainda zomba da situação, como registra a companheira de Amarildo? Como defender uma organização que ameaça a família que busca o paradeiro de Amarildo? Como se pode defender uma organização que, até 14 de julho, era responsável pela permissão de eventos culturais, artísticos e de lazer, segundo Resolução 13/2007, o que na prática proibiu quase todos os eventos realizados antes da ocupação? https://s3.amazonaws.com/meu-rio-production/Resolucao+SESEG+013+-+23.01.2007+-+atuac%CC%A7a%CC%83o+o%CC%81rga%CC%83os+de+Seguranc%CC%A7a+em+eventos+divertimento+pu%CC%81blico.pdf Como se pode defender uma organização que manda prender, soltar, bater e matar, como um reles traficante?

9) Todo esse descalabro de procedimentos e práticas revela que, mesmo ela “prove” no final do processo (sic!) que não foi um policial que puxou o gatilho, fica a constatação de que, no mínimo, foi a policia que mirou e ordenou que o gatilho fosse puxado ou ela puxou junto (ela puxou!). O caso Amarildo expõe a política dos desaparecimentos, a política do genocídio financiada e executada pelo Estado, que institucionalmente se expressa na farsa dos autos de resistência. http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,amarildos-onde-estao,1067443,0.htm. Todo esse descalabro legal de procedimentos releva, no fundo, uma ordem institucional de procedimentos cujo intuito é o genocídio, o cerceamento e a limpeza social, com evidente relação com os eventos esportivos e os interesses da especulação imobiliária. Não esqueçamos a proposta feita de cercar 11 favelas. http://nossorio.wordpress.com/2009/04/07/muro-do-cabral-ou-campos-de-concentracao-ou-auschwitz-a-solucao-final/
 
10)  Ao não responder essas questões, ao silenciar-se sobre o conteúdo e forma da confusão de policiais entre Amarildo e o suposto traficante, ao silenciar-se sobre a totalização da vigilância e controle militar sobre as comunidades, ao silenciar-se sobre a intervenção policial que leva o “suspeito” à unidade militar e não à delegacia civil, ao silenciar-se sobre o caráter de um interrogatório (convenhamos que não existe averiguação sem interrogatório) realizado por policiais militares dentro de um batalhão militar sem direito do interrogado ao mundo externo, inclusive o de não ser torturado (desculpe-me, mas um pobre, preto e favelado dentro de uma unidade militar rodeado por policiais militares sem acesso a ninguém é picanha para pitbull), o secretário pop tecnoburocrata, que paga de humanista em corridas financiadas pelo governo para fazer propaganda das UPPs, e o governador gangstar, estrela decadente da quadrilha do travesseiro, também puxaram o gatilho, e continuam sadicamente a puxá-lo. Eles mataram Amarildo porque construíram uma política militarista e fizeram propagandas e mais propagandas com o militarismo sádico que sacia aqueles que acreditavam em um novo Rio de Janeiro. Eles mataram Amarildo da mesma forma que Hitler matou Anne Frank, mesmo que Anne não tenha morrido por uma bala. Eles mataram Amarildo porque tudo o que o Estado fez naquela noite o levou à morte, ou melhor, tudo o que o Estado fez o matou!!! O Estado continua matando Amarildos!!! As perguntas corretas hoje são “Onde está Cabral?” e “Onde está Beltrame?”. Eles precisam ir a Nuremberg!!! E que não levem como testemunha o Freury!


quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Mais Médicos deveria ir para o MEC!


 :
O Programa Mais Médicos, recentemente lançado pelo governo federal, sofre ataques das entidades médicas e de setores conservadores. Até então, a acusação principal vinha no sentido de indicar que o programa não solucionaria o problema da saúde no Brasil, o que é verdade. Hoje as acusações dos conselhos e associações de médicos vão ao encontro de uma suposta formação deficitária do médico cubano, já que os portugueses, argentinos e espanhois, que vieram na primeira leva, estão nesse momento esquecidos na crítica corporativa.


Por que foram esquecidos? A resposta, seja lá qual for, passa pelo viés ideológico e político. Se até então o problema era o médico estrangeiro, agora o objeto da crítica é o cubano. Sem entrar no mérito da xenofobia remanescente da Guerra Fria que surpreendentemente povoa mentes e corações da elite branca brasileira, para alguns mais sinceros, o problema central agora é a raça e o que essa raça significa politicamente na composição social brasileira, denotando a existência de uma relação de poder de dominação que aos olhos dos mais sinceros e insinceros está sendo flexibilizada pela quebra do monopólio da raça branca à profissão sonhada.

O símbolo é forte: médico. Quando se pensa em um médico, vem à cabeça de todos, inclusive a minha, um cara branco de gel no cabelo com jaleco branco, mesmo que meu médico nos últimos dois anos no posto público de saúde seja um peruano ou boliviano de traços indígenas com jaleco azul claro ou verde claro – nunca consegui identificar precisamente porque ele não acende todas as luzes da sala de atendimento. O médico inegavelmente é poderoso. Senti no tratamento que estou fazendo. Estou com colesterol alto. O médico solicitou que fizesse exercícios e mudasse a alimentação. Fiz. Voltei ao posto para refazer o exame, como ele havia solicitado quando da prescrição. Está escrito no meu prontuário que devo refazer o exame. É só autorizar. Mas tive que marcar uma nova consulta com três meses de intervalo porque o médico e somente o médico poderia remarcar formalmente o exame no sistema. Argumentei a um enfermeiro que um enfermeiro poderia fazê-lo, que não havia necessidade de passar novamente pelo médico para ele não olhar na minha cara e autorizar um exame simples em menos de um minuto, que isto é desperdício de dinheiro e tempo. Argumentei que era só clicar (o sistema é informatizado). Nada adiantou. Qual é o nome disto? ATO MÉDICO. Percebi que tudo gira em torno do ato do médico, que nada no posto de atenção primária ocorre sem um ato do médico. Ou seja, as ações dos outros profissionais são consequências do ato do médico. Difícil pensar em equipe multidisciplinar assim... Entendi o termo e o poder institucional do médico, que estrutura a burocracia do posto que sou atendido. Atrasei três meses o exame por causa de uma autorização formal porque o médico e somente o médico pode autorizar no sistema. Então, é um profissional cheio de poder institucional, inclusive aquele mais inútil, como o meu patético exame de colesterol. Esse poder institucional não foi conquistado sem a consolidação de um poder político e social mediado por uma construção ideológica.

Quanto ao programa, a priori sou contra, mas a posteriori sou ou tornei-me – não sei o que é correto – favorável com reservas, mesmo sem nada ter mudado substancialmente no programa. Sou contra porque o programa não passa de uma ação que contradiz toda a política de saúde construída no governo Dilma. No início do ano, Dilma discutiu com os donos dos planos de saúde a universalização dos planos privados para toda a população mediante renúncia fiscal (modelo estadunidense), calcada fetichismo do poderio financeiro da classe média C. Depois da grita de entidades ligadas ao SUS, ela e Padilha recuaram. Antes, Dilma vetou artigo que obrigava o Estado brasileiro a investir 10% do orçamento da União em Saúde, ficando nos parcos 3% de investimento em saúde pública. Lembro-me de uma entrevista que Padilha é confrontado com uma gravação de Jatene na qual este dizia que não há possibilidade de melhorar a saúde pública sem aumentar o investimento público. Padilha, logo após a exposição da gravação, refutou esse argumento, afirmando que poderia melhorar o SUS com melhoria de gestão. Qual é a diferença com o Choque de Gestão de Bresser-Pereira? Ainda daria para colocar no mesmo saco a restituição do imposto de renda como forma de financiamento aos planos privados de saúde, algo que Dilma nem cogita retirar, e a tentativa dela de privatizar os hospitais universitários ligados às universidades federais com a criação de uma empresa terceirizadora – Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh)Enfim, toda a política do governo federal até junho caminhava à privatização, à terceirização e ao congelamento dos recursos públicos no SUS.

O programa Mais Médicos surge em afogadilho às manifestações de junho, mesmo que já tivesse sido gestado antes de junho. Foi apresentado quando Dilma necessitava criar medidas que viabilizassem sua reeleição em meio à queda dos índices de aprovação. Pode-se dizer que o programa é por ora uma ação que contradiz hipocritamente a política estatal para a saúde, ou, com boa vontade, pode ser entendido com um ponto de inflexão à política privatista de então. Boa vontade porque ela não acena tocar no vespeiro da relação saúde privada com saúde pública e saúde privada com recursos públicos.

Não vi os conselhos atacarem o governo federal sobre os pontos acima discriminados com a mesma efusão de sentimentos e vontade. Para ser sincero não vi. A questão da privatização, por exemplo, sequer mereceu qualquer notinha mequetrefe. Quando o Padilha disse que poderia discutir a instituição de um plano de carreira ao médico com as mesmas prerrogativas do juiz, após comparação do Conselho Federal de Medicina com planos de carreira que considerava razoáveis, achei que os médicos entrariam de cabeça, corpo e alma nessa pauta. Que profissional não entraria? Mas quando Padilha propôs teatralmente – porque sabia que seria ignorado e seu tom professoral nas entrevistas indica isto, além dessa política se opor aos interesses dos planos privados, financiadores de campanha – que exigiria dedicação exclusiva, como é exigida ao juiz, o que significaria não mais clinicar em consultórios particulares, o recuo dos conselhos demonstrou que parte de sua defesa, que se alicerça no ideário pragmático de sua base conservadora, estava e está na defesa do status quo do médico. Sei que há muitos médicos militantes que discordam do programa e do conteúdo corporativista da defesa dos conselhos, mas são minoria, infelizmente, porque se fossem ouvidos, tenho convicção que esse debate pautado na xenofobia e no racismo seria substituído por um debate centrado na instituição de um sistema universal de saúde com centralidade no trabalho, em todos os sentidos, do usuário ao trabalhador da saúde.

Entretanto, as consequências políticas da chegada dos médicos ao embate ideológico foram interessantes, as mesmas quando da introdução de cotas sociais e raciais. Vamos relembrar: dizia-se quando da introdução das cotas sociais e raciais que os estudantes cotistas possuiriam formação deficitária, e por isso seriam os responsáveis pela diminuição da qualidade do ensino superior público.  Alguma coincidência? Nenhuma, é o mesmo apreço farisaico pelo fantasma do mérito como instrumento de seleção social, em que eles fazem parte da elite porque merecem pertencer à elite. É uma construção ideológica, que no caso das cotas, foi derrubada por pesquisas que demonstravam o mérito acadêmico dos alunos cotistas igual ou superior ao mérito acadêmico dos alunos não cotistas.

Nem dá para entrar no mérito do Revalida, porque se os cubanos não o fazem, os brasileiros também não, o que invalida o raciocínio pseudológico e medíocre dos conselhos sobre a avaliação como parâmetro de validação de conhecimento e eficiência, porque simplesmente não há possibilidade de comparação. Também não dá para entrar no mérito do discurso do voluntarismo cego que o médico deveria ter. Se um professor não deve tê-lo, não deve assumir jornada de 65 horas (como propõe o governo estadual paulista) porque deve defender sua carreira e jornada de trabalho, o médico, enfermeiro ou qualquer outro trabalhador também não. Aliás, o discurso que parte da esquerda embarcou é vergonhoso, no mínimo, relacionando o médico a uma disposição de vida franciscana, a uma figura messiânica.  Contudo, também não dá para aceitar a seco o discurso hipócrita dos médicos, de que eles não vão para o interior porque não há infraestrutura. Há muitos postos de saúde bem aparelhados no interior, no norte e nordeste, assim como há muitos postos improvisados, e os dois tipos de postos estão vazios no interior, no norte, no nordeste e, inclusive, nas periferias das grandes cidades. Os médicos não vão porque não querem perder o padrão de vida que uma cidade grande proporciona, onde normalmente cresceram e viveram, ou não querem andar de carro por uma ou duas horas para ir à periferia quando podem perder 20 minutos em um posto mais central. E esse problema não se resume aos médicos. Isso só se resolveria com um plano de carreira único e geral, pauta que os conselhos de médicos fugiram.

Fugiram por quê? Porque trabalham no setor privado, onde ganham mais e sempre ganharão mais, porque se não ganharem mais o setor privado entrará em falência por falta de médicos. Simples! Então como se resolve? Decidindo: não há sistema misto em lugar nenhum do mundo. Ou há países com saúde pública universal (Social-democracia europeia) que permite residualmente a oferta de saúde privada ou países com saúde privada (EUA) que oferece residualmente e bem residualmente saúde pública, que é o caminho que o Brasil parece está trilhando. No primeiro caso há universalidade com qualidade. No segundo a saúde de qualidade é oferecida aos que podem pagar, portanto não é universal. O setor público transforma-se em um atendimento pobre para pobre. O sistema brasileiro está no meio do caminho, pendendo para o setor privado, que suga recursos públicos do SUS e dá vazão à ideologia construída desde a década de 1990 da qual o SUS é para quem não pode pagar um plano de saúde privado, portanto é resto. Se o objetivo é uma saúde universal e de qualidade, como apregoa a constituição federal, a resolução, portanto, passa pelo fim da saúde privada ou suplementar, o que está a quilômetros da cabeça de Dilma, Padilha, conselhos de médicos, elite e classe média, e pela regulamentação da carreira do médico, impingindo-lhe plano de carreira rígido e nacional. A bem da verdade, em um país de dimensão continental, professor, médico e enfermeiro deveriam ter um plano de carreira rígido e nacional, que possibilitasse cobrir com esses profissionais todos os pontos hoje descobertos. Se bancário do Banco do Brasil é assim...

O programa, sem querer querendo, ataca um ponto que estava adormecido na sociedade brasileira: a reprodução da elite por meio da profissão. A imagem de negras e negros de jaleco branco ataca o imaginário racista da elite branca. Ataca a ideologia do médico como profissional bem-sucedido, porque negras e negros não são bem-sucedidos nas relações brasileiras de poder. Ataca a ideologia do médico como reserva de mercado da elite branca, como instrumento de dominação política e ideológica. Alguém viu esse pessoal defendendo a PEC das domésticas com a mesma vontade que acusa o programa Mais Médicos de trabalho escravo? Alguns que gritam contra o programa foram até contrários à PEC das domesticas! É realmente cômico ouvir desse zé povinho acusações de que os médicos seriam escravos. 



Essas reações indicam que médicos com cara de empregadas, mendigos, garçons, flanelinhas, jardineiros, podem ser educativos. Se não, podem pelo menos explicitar de vez o que é a elite brasileira, racista, preconceituosa e sem princípios. Como diz Maquiavel, o preconceito tem mais raízes do que os princípios. As declarações estúpidas e os corredores poloneses dessa elite corroboram a máxima.

L.F.S.

sábado, 10 de agosto de 2013

O mito da classe média explorada I: Bolsa-Família Pobre, Bolsa-Família Classe-Média e Bolsa-Família Milionária






Um espectro ronda os condomínios brasileiros: o espectro dos impostos. Toda a sociedade deve ser unir a essa jornada: do papa Francisco a Edir Macedo, de Aécio Neves a Eike Batista, de José Serra a José Dirceu, da Família Marinho a Daniel Dantas.
Que partido, ao propor um imposto para financiar a saúde ou a educação, não foi acusado de antilibertário, castrador e déspota. Que partido de oposição, por sua vez, não lançou a seus adversários de direita ou de esquerda a pecha infamante de explorador?
Toda a história da humanidade pode ser resumida na luta do Estado versus cidadão explorado, espalhada hoje na vadiagem dos pobres não pagadores de impostos sustentados por políticas públicas financiadas com dinheiro público oriundo de impostos e a classe média explorada pagadora religiosa de impostos. Assim foi entre os aristocratas atenienses e os escravos vagabundos, entre os patrícios e os ociosos dos plebeus que não sustentavam o senado, entre o barão e o imbecil preguiçoso do servo. Toda a história da humanidade pode ser resumida na luta entre o Estado opressor e o indivíduo oprimido, na qual a opressão se expressa pelo pagamento de impostos.

         Se fosse um manifesto que procurasse sintetizar sua visão de mundo, o acima poderia, talvez, expressar o teor das reivindicações da classe média. A classe média parte do seguinte pressuposto: ela é a classe (sic!) verdadeiramente explorada, que paga seus impostos; portanto, o explorador é o Estado (sic!). As outras classes (sic!) não são exploradas, seja porque são ricas e não precisam trabalhar, seja porque são pobres e não pagam impostos, sobretudo imposto de renda. Então, como tsunami, ela se volta com ódio mortal aos impostos diretos, sobretudo o Imposto de Renda, o IPTU e o IPVA, alegando que são impostos que ela majoritariamente paga, transformando-se em pilar de sustentação do corrupto Estado brasileiro.
         Com um maniqueísmo típico, ela relaciona a pujança dos congressistas com os impostos, alegando que é ela que os sustenta. Ainda por cima, volta-se para as políticas sociais, alegando também que é ela que sustenta todo esse desperdício. Mas, para chegar a essas conclusões estúpidas, ela elimina muitos e muitos conceitos e constatações que não permitiriam, com um mínimo de rigor lógico, obtê-las. Para chegar a essas conclusões, ela se faz a classe mais ignorante da composição social brasileira.
         Vamos analisar alguns tópicos:
1º Classe média não sabe nada de carga tributária.
Ao contrário do que boa parte da classe média pensa, ela paga poucos impostos. E não falo comparando com a média dos países ricos, quando ela alega que lá, pelo menos, há serviços de qualidade – o que revela que, no fundo, ela só quer pagar o que “consome”, como shopping center. Falo comparando com outros segmentos populacionais da sociedade brasileira. Grande parte da carga tributária brasileira é fruto de impostos indiretos, que são aqueles que estão na cadeia produtiva e compõem o preço da mercadoria, já que nenhum burguês que se preste fica com esta conta na medida em que pratica altivamente a política da socialização dos prejuízos. Os impostos indiretos são pagos por qualquer pessoa quando compra qualquer mercadoria ou serviço. Estima-se que 48% a 50% da arrecadação brasileira ocorram através de impostos indiretos, o que significa que todos, independente da classe ou segmento, pagam a conta, porque todos consomem. Enquanto isto, os tributos diretos representam cerca de 28% da carga tributária brasileira.


2º Classe média não sabe nada da distribuição da carga tributária brasileira.
         Como o consumo consiste em 50%, em média, da composição de gasto da família brasileira, o pagamento de impostos indiretos passa a significar grande parte da receita do Estado. Entretanto, quanto menor a renda familiar, maior a incidência do consumo sobre ela, fazendo com que, proporcionalmente, essa família pague mais impostos indiretos comparados com famílias com maior renda. Ou seja, o problema não é o pobre que não paga imposto, porque ele paga, mas o rico que paga pouco, pois o comerciante, industrial ou prestador de serviços transfere os seus impostos para o preço da mercadoria.
         Segundo dados da Receita Federal, uma família com renda de até R$ 400,00 destina 57,85% para habitação (aqui tem IPTU, pois o dono da imobiliária ou o cedente faz o cidadão pagar em parcela destacada no começo do ano ou embute no preço do aluguel, o que desmente a ideia segundo a qual pobre não paga imposto direto), 45,34% para alimentação (impostos indiretos), 11,81% para transporte (impostos indiretos), 8,28% para vestuário (impostos indiretos) e 6,26% da renda com despesas com saúde (impostos indiretos, já que grande parte destina-se para medicamentos inexistentes na rede pública de saúde ou automedicação). Reparou que não há espaço orçamentário para lazer?   (Recomendo a leitura do trabalho no link http://www3.tesouro.fazenda.gov.br/Premio_TN/XIIIpremio/sistemas/1tosiXIIIPTN/Carga_Tributaria_Brasil.pdf/)
         Peguemos o ICMS. Enquanto que o ICMS incide sobre a renda familiar monetária em famílias que recebem até R$ 400,00 em 11,08%, em famílias com renda acima de R$ 6.000,00 o mesmo tributo incide 6,03%. Algo parecido ocorre com o PIS e Cofins e IPI, ainda que este seja mais igualitário, o que é também um problema quando se pensa que sistema tributário justo é aquele que, à luz da equidade e igualdade, trata desiguais de forma desigual.
Bem, então a classe média partiria para uma defesa ferrenha de uma reforma tributária que cobre mais dos ricos, taxando renda e fortuna e desonerando produtos, sobretudo aqueles ligados ao consumo imediato, qual seja, alimentação, habitação e vestuário simples? Não, ela defende ferrenhamente a diminuição da carga tributária, em alguns casos a extinção de impostos, taxas e contribuições, como foi o caso da CPMF.
         Ela confronta a sua moral e bom costume contra qualquer política de assistência a trabalhadores pobres e miseráveis, afirmando que ela, explorada, está sustentando vagabundo que não sabe votar. Bem, por que ela faz isto?
         Aqui é uma mistura de ignorância, preconceito e autopreservação. Analisando sucintamente os valores despendidos dos impostos pelo Estado brasileiro, chegamos à constatação que muito do que é arrecadado é direcionado para pagamento de juros e rolagem da dívida pública.



         Mas o que isso significa? Significa que metade da média dos trabalhos dos brasileiros (PIB) é direcionada para pagamento de dívida e juros para os poucos que possuem títulos da dívida pública. Mas quem são os detentores de títulos da dívida pública? Famílias milionárias. Contabiliza-se algo em torno de 20 mil clãs, segundo o IPEA, que se apropriam de 70% dos juros pagos pelo Estado, com garantia de superávit primário de 5 a 6 % do PIB subscrita em programa econômico oficial, em contraposição aos 11 milhões atendidos pelo Programa Bolsa-Família, que resume seus parcos recursos a 1% do PIB brasileiro.
Diante disto, proponho, sintetizando as indicações de Leonardo Sakamoto, que chamemos o pagamento de títulos da dívida pública de Bolsa-Família Milionária, e o pagamento do programa governamental a famílias trabalhadoras de baixa renda de Bolsa-Família Pobre.
         Mas façamos um esforço maior para compreender o absurdo da coisa. Agrupemos todas as políticas públicas que, em tese, são direcionadas ao trabalhador – digo em tese porque, além da corrupção, há PPP, projetos duvidosos, como o TREM BALA, que não é para quem para em Capão Redondo e sim em Higienópolis, programas elitistas de Ciência e Tecnologia, onde hoje grande parte vai para inovação em multinacionais e suas prestadoras de serviço, isenção de impostos como programas sociais, como bolsas de estudo em entidades privadas de todas as etapas de ensino e Planos de Saúde, retirando investimento de escolas públicas e SUS e direcionando dinheiro público para escolas privadas e planos privados, etc.etc.etc.. Agrupemos as seguintes áreas: Ciência e Tecnologia, Gestão Ambiental, Saneamento, Habitação, Urbanismo, Direitos da Cidadania, Cultura, Educação, Saúde, Trabalho, Assistência Social, Segurança Pública, Transporte e Desporto e Lazer. Por ora, vamos retirar a Previdência Social, que corresponde a, aproximadamente 19% do PIB. Somando todos os investimentos, chega-se a bagatela de 10,8 % do PIB. Somando com Previdência Social (lembrando que o grosso pago é de funcionários públicos federais, algo distante dos que recebem programas sociais), chega-se a 29% do PIB. Muito abaixo dos 47% de amortização (que não existe, pois a dívida só cresce, o correto seria rolagem) e pagamento de juros da dívida pública. Sim, o pagamento de juros e o tal do superávit primário superam todos os anos o investimento em saúde e educação, como pode ser visto em 2011 e 2012 e provavelmente em 2013, que possui uma previsão de 42% do PIB para pagamento de juros e amortização da dívida, algo em torno de R$ 900 bilhões.
         Chega-se a conclusão de que a classe média não é contrária a políticas de distribuição de renda, mas tão somente ao programa Bolsa-Família Pobre, pois destila seu ódio tão unicamente a esse programa de distribuição de renda. O Bolsa-Família Milionária é fruto de desejo da família de classe média, quando já não participa da jogatina da bolsa de valores com seus parcos títulos do BB. Almejam entrar no clã dos herdeiros do programa Bolsa-Família Milionária, o qual “distribuiu” em 2008 R$ 162 bilhões quando o Imposto de Renda arrecadou na fonte-salário R$ 50 bilhões e um total de R$ 190 bilhões.
Segundo o IPEA, uma família que recebe menos do que dois salários mínimos, para o mesmo ano de 2008, teve que trabalhar 197 dias para pagar impostos (mais do que seis meses cara pálida), ao passo que quem recebe mais do que 30 salários mínimos teve que trabalhar 106 dias (pouco mais do que três meses). Em tese, um pobre trabalha praticamente duas vezes mais do que um playboy para pagar o fisco, mesmo não tendo que pagar, formalmente, imposto direto.
Então, por que o ódio ao Bolsa-Família Pobre?

3º Classe média é hipócrita porque adora uma renúncia fiscal
         Pagar imposto direto seria ótimo para uma política tributária mais justa, pois permitiria construir um sistema mais justo em que os mais ricos pagassem mais. Entretanto, no Brasil, pagar imposto direto, mesmo com todas as reclamações, é bom, mas não para o Estado Brasileiro, e sim para o contribuinte que consegue pagar imposto de renda e pagar menos impostos indiretos.  Como o sujeito pode abater quase tudo na declaração e ainda consegue a restituição do Imposto de Renda, o Imposto de Renda transforma-se em uma boa política de fomento para muitos setores privados (e privatizados). Assim sendo, no Brasil o Imposto de Renda não é um dever, mas um direito obrigatório, mais ou menos como o voto.
         Direito por que o sujeito vê parte de sua renda usada para fins privados voltar para o seu bolso. Quando o Estado restitui um plano de saúde ou a mensalidade de escola particular, fomenta-se o mercado privado da saúde e da educação. Veja, há pessoas que compram um plano privado de saúde ou pagam a mensalidade de escola privada porque sabem que o governo vai depositar em sua conta parte do que foi gasto. Contudo, esse dinheiro que cai na conta do consumidor vai para o bolso do plano de saúde e do dono da escola privada, como ocorre hoje com o subsidio dado às empreiteiras com o Minha Casa Minha Vida. Na prática, é subsidio.
         No ano de 2011, esse subsídio a todos os setores que imaginar, segundo o IPEA, perfez R$ 137 bilhões. Em Imposto de Renda de Pessoa Jurídica foram R$ 28 bilhões, enquanto que para Pessoas Físicas foram R$ 16 bilhões. Se você colocar no bolo isenções como IPI, Igrejas etc.etc., a coisa passa dos R$ 300 bilhões. Só com plano de saúde, estima-se isenções na ordem de R$ 16 bilhões, um quarto do orçamento do Ministério da Saúde – sem contar também a dificuldade do SUS de restituição dos Planos de Saúde para tratamentos mais caros, uma vez que eles empurram sem dó para o SUS.
         Como isso passa pela classe média para que ela gaste em setores privados, os quais ela quer distância daqueles prestados pelo Estado (serviço público), proponho que chamemos de Bolsa-Família Classe-Média. A restituição faz parte da política de “distribuição” de renda constituída pelo Estado brasileiro, sem a qual setores privados (e privatizados) diminuiriam sua margem de lucro e aumentariam o valor dos convênios e mensalidades. Essa política ajuda a induzir a classe média a fugir do serviço público. Ah, já sei, a classe média vai para o setor privado porque o setor público é ruim. Errado. Ela vai para o setor privado e piora o serviço público porque retira orçamento dele com indução do Estado, comprometido com a margem de lucro dos planos de saúde e escolas privadas. Quem sabe minimamente de História da Educação sabe do comprometimento histórico do Estado brasileiro com as escolas privadas. Quem acompanha os jornais, sabe que Dilma, no começo do ano, bem antes das manifestações de junho, propôs a universalização dos planos privados a baixo custo com subsídio estatal nos moldes do Tea Party. O lobby desses setores é fortíssimo, são grandes financiadores de campanha (Sobre o assunto, leia os textos abaixo).
         
         Ah, restituição não é bolsa, é restituição, como o próprio nome diz. Mas veja, se o Bolsa-Família Pobre é fruto de impostos, taxas e contribuições, e se sabidamente grande parte da arrecadação vem dos impostos indiretos, e se sabidamente grande parte dos impostos indiretos são pagos pelos trabalhadores pobres, então é justo tratar o Bolsa-Família Pobre como restituição também, porque o mecanismo é o mesmo. Pagaram impostos e tiveram parte dos impostos restituídos. Mas como ninguém trata o Bolsa-Família Pobre como restituição, e sim como bolsa, então é razoável também que tratemos a restituição do Imposto de Renda como Bolsa-Família Classe-Média.
         Recentemente, houve a notícia de que 1,6 milhões de famílias devolveram, voluntariamente, os cartões por considerarem que não necessitam mais do programa, pois ultrapassaram o valor de R$ 140,00 por indivíduo. Façamos uma média de que, por ano, uma família do Bolsa-Família Pobre receba R$ 1.000,00. Digamos que uma pessoa receba uma restituição com o mesmo valor. Será que ela devolveria? Nunca ouvi falar. Devolver restituição de imposto de renda ou desistir dela na elaboração da declaração ninguém quer... ou se existe, estou convicto que são casos não chegam a 1 milhão de pessoas.


4º Todo mundo fala do impostômetro, mas e o sonegômetro?
         A sonegação de impostos, segundo o sonegômetro, pode chegar a R$ 415 bilhões em 2013. Isto equivale a
- Mais que toda arrecadação de Imposto de Renda (R$ 278,3 bilhões).
- Mais que toda arrecadação de tributos sobre a Folha e Salários (R$ 376,8 bilhões).
- Mais da metade do que foi tributado sobre Bens e Serviços (R$ 720,1 bilhões).
- 5.156.521 ambulâncias;
- 1.441.319 postos de saúde equipados;
- 8.647.916 postos policiais equipados;
- 12.456.996 salários anuais de policiais (SP);
- 30.079.710 salas de aula;
- 20.377.006 salários anuais de professores do ensino fundamental (piso MEC);
- 612.241.888 salários mínimos;
- 1.241.699.072 cestas básicas;
- 2.986.330 ônibus escolares;
- 4.010.628 km de asfalto ecológico;
- 18.672.964 carros populares (Fiat Mille Economy 2p);
- 13.836 presídios de segurança máxima;
- 143.137.931 iphone 5 (16Gb);
- 11.860.000 casas populares (40m²);
- 16.000.000 de bolsas família por 31 anos (básico R$70,00).
         Bem, quem sonega imposto? É aquele que paga impostos indiretos? Não, não tem jeito, está embutido no preço da mercadoria. Quem sonega é aquele que paga tributos diretos, seja Pessoa Física ou Jurídica. Então façamos o cálculo político. Pobre paga imposto indireto, que é o que compõe a maior parte da carga tributária; pobre proporcionalmente paga muito mais imposto e, portanto, trabalha mais dias, mais do que seis meses para dar conta do fisco; pobre não paga imposto direto, o qual ainda permite a restituição de parte e a sonegação para quem paga (por isso que no Brasil é um direito obrigatório, e não um dever); e o problema é o Bolsa-Família Pobre? O Bolsa-Família Classe-Média é ignorado pela classe média por questão de hipocrisia e pelos milionários por interesse de subsídio a setores privados (e privatizados), e o Bolsa-Família Milionária também o é por questão de hipocrisia pelos milionários e pela classe média explorada que sonha em pertencer ao seleto grupo.

Aqui é um ponto interessante, porque a classe média se junta com os burgueses ricaços, que, abraçados à distância, voltam a raiva e ódio aos trabalhadores pobres. A explicação é simples. É muito mais fácil e óbvio odiar o que você não quer ser do que você quer ser, almeja e sonha todos os dias fazendo gracinha para o chefinho em busca de uma progressão na carreira. Odiar o pobre, ter frêmito de prazer ou bocejo de indiferença quando um grupo de extermínio mata pobre e preferencialmente preto – “É tudo bandido!” –, é consequência lógica de quem tem horror a proletarização, como bem lembra Marilena Chauí (ver vídeo em http://www.youtube.com/watch?v=9RbBPVPybpY)


Mas não é só isso. Os direitos sociais, como saúde, educação e transporte, por exemplo, a classe média os obteve nos últimos 20 anos de forma privada, ainda que com qualidade para lá de duvidosa. Ela compra esses direitos sociais. Quem é da década de 1990 vai se lembrar. Quando da onda das privatizações, era comum ouvir, além da ineficiência inerente do setor público, que o mesmo deveria existir somente para quem não conseguisse ter renda suficiente para ter acesso ao mesmo serviço oferecido pelo setor privado. O que está implícito? O setor público é apenas um ente subsidiário do setor privado mais eficiente. Assim, serviço público é coisa pobre para pobre, porque ele deveria estar na rebarba das políticas estatais, dimensionadas prioritariamente pelas agências reguladoras.
         Como a classe média conseguiu alçar vôo no Plano Real para ter acesso aos direitos sociais de forma privada, o setor público transformou-se em algo a ser evitado, inclusive na sociabilidade mais rasa que se possa imaginar – entre uma praça e um shopping para um passeio familiar, advinha qual é a escolha? A praça de alimentação –. Qual foi a consequência? Além de transformar o privado em espaço precípuo de sociabilidade, recrudescendo o individualismo, retirou pessoas das fileiras de luta por melhoria do setor público. Então, a questão na década de 1990 não era melhorar a educação pública, a saúde pública e o transporte público, porque foram substituídos pela saúde privada, a escola privada e o carro individual moderno privado em oposição às carroças de Collor. A questão era ter acesso individual a esses direitos.
         Nesse sentido, qualquer imposto é visto como uma barreira para a consecução individual dos direitos mercantis. A CPMF foi um grande exemplo. Para quem tem saúde privada, o imposto é uma excrecência. Daí o entendimento de que estaria financiando algo para os outros, pecado mortal da contemporaneidade. Juntou-se a esse sentimento a necessidade de a burguesia eliminar um instrumento razoavelmente eficaz de rastreamento de movimentações financeiras “atípicas”, e o trabalho foi feito.
De forma mais abrangente, qualquer medida que modifique as regras desse jogo é vista como um ataque do Estado à individualidade, metamorfoseada em individualismo. Observe o caso da regulamentação das empregadas domésticas, cuidadoras e babás. Esse caso mostra algo latente na sociedade brasileira, que é a anulação de qualquer medida que modifique as regras do jogo, mesmo que sejam regras do continente que todos têm por estima como exemplo de civilidade e até de Civilização e que as práticas a serem eliminadas remontem práticas escravagistas.
Logicamente que essa característica da sociedade brasileira é intensificada pelo fosso da desigualdade social. A Professora Fúlvia Rosemberg possui uma argumentação da qual gosto muito. Em sociedades mais igualitárias, onde a diferença entre os mais ricos e os mais pobres é pequena, pagar uma empregada, com salário mínimo, consiste em pobreza imediata. Se um alemão recebe 5.000 euros, mas o salário mínimo, digamos, é de 3000 euros, sobram para ele 2.000 euros, menos do que o empregado e o salário mínimo. Como a diferença entre os mais ricos e os mais pobres no Brasil é imensa, isso faz com que se constituía um mercado de prestação de serviços inúteis de trabalhadores sub-remunerados para quem possui renda, parecido com o Brasil-Colônia, pautado na ojeriza ao trabalho manual. Como a classe média pode pagar por uma babá, por exemplo, para cuidar de seus filhos, ela não coloca na ordem do dia o atendimento público de escolas públicas de educação infantil, porque a mãe trabalha normalmente e esse serviço está a contento, ainda que não seja profissional com um professor. Isso explicaria por que as creches somente agora estão sendo expandidas, por que não foram colocadas ontologicamente na ordem do dia do movimento feminista brasileiro, mais direcionado historicamente a questões sobre o corpo.

Estúpida que acha que pedir um chá à empregada às 10h00m da noite é “direito”. Peguei a foto menos chocante, porque a cara dela está desfigurada por botox.
 
         Faz sentido. Se você oferece uma educação privada ao seu filho, por que lutar por uma escola pública de qualidade (mesmo sendo um professor de escola pública)? Se você possui um plano de saúde privado, por que lutar por uma saúde pública de qualidade (mesmo sendo um médico ou enfermeiro de posto público)? Pode até lutar, mas sempre será no nível da solidariedade e do voluntarismo, o que é relevantíssimo, mas não é ontológico. Sob uma visão mais solipsista, pagar imposto transforma-se em um entrave para o “crescimento pessoal”, mensurado pelo aumento da capacidade de consumo, o que inclui aquilo que seriam direitos sociais e constitucionais.
         A única coisa que a classe média não conseguiu obter de forma privada foi segurança, muito em função dos custos e do monopólio flexibilizado do Estado, sobretudo para os milionários nos condomínios de alto padrão, o que explica as visões mais fascistas sentidas atualmente, como o apoio velado e explícito a grupos de extermínio e redução da maioridade penal. Quando se analisa o caso do governo estadual paulista, isso é mais grave, pois, além da xenofobia bandeirante já naturalizada, como o governo estadual privatizou quase tudo (estradas e rodovias), municipalizou a educação e entregou a saúde para Organizações Sociais (OS), não sobrou quase nada para o governador governar de forma direta, a não ser as polícias, especialmente a militar, o que resultou na militarização das questões sociais. Na prática, os governadores paulistas transformaram-se em comandantes das polícias, explicando as suas aparições quase que diárias em programas policiais.

Ação na Cracolândia.
         A questão da distribuição tributária no Brasil deve ser compreendida para além dos números. Ela deve ser entendida como a síntese das mazelas sociais, políticas e culturais, expressão moderna de um estado perpétuo de injustiça mesmo para uma visão estritamente republicana. Oxalá às manifestações tenham trazido um ar diferente para todo esse jogo. Agora, é preciso fazer com que esse ar rume para uma política tributária que promova justiça aos injustiçados, porque são eles que sustentam o Bolsa-Família Classe-Média e o Bolsa-Família Milionária.


L.F.S.