Depois da publicação e da veiculação do resultado do
inquérito policial sobre Amarildo, incriminando 10 policiais, a questão agora
deve se voltar ao projeto da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) e o que ele representa. Por que não dá para defender o projeto UPP? O caso Amarildo revela
a essência do Estado. Revela a existência dos hiatos entre a existência mundana
de um pedreiro e a promessa da felicidade humana vendida no projeto da UPP. O
caso Amarildo deve ser entendido para além da visão tecnocrata aparentemente
humanista do secretário pop de segurança e do governador playboy da gangue do travesseiro. O caso Amarildo revela o que é a
UPP, a principal política governamental carioca, que não é a educação, neste
exato momento em greve e com uma professora morta por gás lacrimogênio. Pode-se
dizer que não dá para defender a UPP ou as intervenções militares feitas por
todo o Brasil porque há uma semelhança cruel entre Amarildo e Anne Frank:
1) Amarildo,
segundo versão policial, foi confundido com um traficante. Ok. Entretanto, qual
traficante, qual é o nome dele, cadê a foto, por que foi confundido? Por que
não foi apresentado o fundamento do erro? Por que a foto do traficante
procurado supostamente parecido com Amarildo não se tornou pública? Enfim, qual
é o teor da confusão, porque, se foram confundidos, o Estado através da figura
do secretário pop deve explicitar o teor da confusão, o tipo e os motivos. Se
não houve confusão como o inquérito policial agora mostra, por que essa dúvida
não foi dissipada logo no início? Simples: por que esse é o modus operandi da polícia nas
intervenções nos morros cariocas, para as quais sempre há a figura do
traficante incógnito para explicar todas as execuções.
2) Eu
não sou especialista, mas quando sou abordado por um policial menos truculento,
este pega meu documento e confere, via rádio, com uma central. Isso foi feito?
Se sim, então qual foi a confusão da central ou entre a central e o policial?
Por que o Estado não apresentou o que poderia ter confundido os policiais? As
respostas a essas perguntas simples já apontariam, com mais realidade, os
culpados, independente da investigação supostamente científica exposta em modus pollens e modus tollens em algum papel timbrado. O incógnito e a não
investigação das explicações estúpidas, sob o beneplácito da cúpula de segurança
e governadores, é a essência da intervenção terrorista do Estado.
3) Supondo
que houve de fato uma confusão (sic!) e que o inquérito policial esteja todo
equivocado (sic!), uma ilegalidade absurda foi impetrada. Defendo o fim da
polícia militar e a reforma completa de todas as polícias, mas vou seguir alguns
argumentos daqueles que defendem as policias como estão. Quando alguém vai para
averiguação de algo, seja lá o que for, ele deve ir, segundo legislação
vigente, à delegacia, a fim de prestar esclarecimentos ao delegado de plantão,
um civil. Polícia militar, e Unidade de Polícia “Pacificadora” é uma
organização pertencente a Policia Militar do Rio de Janeiro, é uma unidade
estatal ostensiva, e não investigativa. Por que Amarildo foi levado a uma
unidade militar? Por que isto não está sendo devidamente questionado? Seria
essa prática pertencente ao universo das intervenções militares no Rio de
Janeiro? Seria essa prática fundamental para a sobrevida das UPPs? Seria uma
prática universal das UPPs que somente agora foi possível vê-la de forma clara
e distinta? Sim, pois a UPP pressupõe em sua organização o controle total do
território, mais ou menos como um traficante do CV.
4) Então,
ao invés de ser encaminhado para uma delegacia, Amarildo foi encaixotado e
levado para uma unidade da própria UPP. Sem direito a advogado, telefonema ou
qualquer possibilidade de comunicação externa, submetido às regras truculentas
do meio militar, ele foi “averiguado” por policiais militares. Pode policial
militar realizar averiguações de caráter investigativo? Pode realizar perguntas
com o objetivo de investigar algo de forma mais profunda? Partindo do
pressuposto de que houve a confusão, até que ponto perguntas dentro de uma
unidade militar não se configuram em interrogatório policial, prerrogativa da
policia civil? Qual é o limite, ou a UPP vive da ausência dessa linha
demarcatória e, portanto, se faz totalitária em um morro? E as respostas óbvias
a essas perguntas simples que um abitolado que defende a polícia militar como
ela atualmente é revelam que a UPP pressupõe o controle total, sobretudo sobre os
moradores.
5) Ocorreram
dois casos muito famosos em São Paulo em 2010, que foram os casos de Alexandre
Menezes dos Santos e Eduardo Pinheiro dos Santos, ambos motoboys, levados para unidades
da PM-SP, onde foram torturados e mortos. Naquele momento, o governador Goldman
proibiu essa prática, pelo visto comum no Rio de Janeiro, afastou os
comandantes e pagou imediatamente indenização aos familiares. http://www.saopaulo.sp.gov.br/usr/share/documents/164.pdf.
Achei, ingenuamente, que seria uma ação pertencente a um conjunto de medidas
que objetivariam controlar a polícia, já que nenhum governador a controla de
fato, seja porque polícia no Brasil virou um negócio rentável que vai de
eleições sindicais, extorsão de traficantes através de sequestro de familiares,
roubo de cargas à segurança de alto padrão, seja porque os governadores e seus séquitos
participam de alguma forma dos negócios, nem que seja através do dividendo dos
noticiários de enfrentamento direto, passando a impressão de que a polícia age
energicamente contra o crime que ela mesma participa. As chacinas de grupos de
extermínio no começo de 2013 desmentiram minha crença.
6) Por
que, após o ocorrido, o ex-comandante chorão que é também cidadão e chincha
abertamente a mídia a seguir versão militar sobre as manifestações declarou que
Amarildo foi morto por traficantes, se ele é militar e quem deve concluir isto
é um delegado civil? Por que isso virou, no primeiro momento, linha de
“investigação” prioritária, se, em tese, a polícia é suspeita, e a família –
testemunha como atestam as imagens – dizia o contrário? O que dizer sobre a
tentativa do antigo delegado de incriminar Elizabeth pelo assassinato do
marido, afirmando que os dois eram traficantes, algo parecido com o que foi
feito com a engenheira desaparecida em um túnel?
7) Como
se pode defender um projeto de intervenção estatal em comunidades pela via unicamente
militar? O termo pacificação não é um termo humanista, mas sim militar,
utilizado por agrupamentos militares após a invasão por terra, ar e/ou mar. http://www.revistahabanero.org/v4/2013/08/22/vamos-falar-de-pacificacao-2/.
Se foi usado pelos EUA no Iraque, pelos Nazistas na Polônia ou pela banda da
especulação imobiliária no Rio de Janeiro constitui-se em detalhe meramente
geográfico. É uma organização que tem acesso a todas as casas, sem mandado
judicial, que pode “averiguar” a todos em qualquer situação e que tem ainda,
como está evidenciado, acesso até mesmo às câmeras de segurança instaladas no
morro, ao GPS dos carros e demais mecanismos de controle. Como se pode defender
uma organização que, na prática, substitui os traficantes com a mesma sangria e
métodos, como atesta os números dos desaparecimentos antes e depois das UPPs?
DESAPARECIMENTOS
ANTES E DEPOIS DAS UPPS
UPP
|
ANO
ANTERIOR
|
ANO DA
INAUGURAÇÃO
|
ANO SEGUINTE
|
Santa Marta (2008)
|
1
|
0
|
1
|
Cidade de Deus (2009)
|
18
|
16
|
49
|
Batan (2009)
|
5
|
3
|
2
|
CM/Babilônia (2009)
|
1
|
2
|
0
|
Pavão-Pavãozinho (2009)
|
5
|
6
|
6
|
Tabajaras/Cabritos (2010)
|
4
|
4
|
3
|
Providência (2010)
|
7
|
5
|
5
|
Borel (2010)
|
2
|
12
|
9
|
Formiga (2010)
|
1
|
3
|
5
|
Andaraí (2010)
|
5
|
3
|
6
|
Salgueiro (2010)
|
2
|
2
|
3
|
Turano (2010)
|
9
|
4
|
5
|
Morro dos Macacos (2010)
|
2
|
3
|
7
|
São João (2011)
|
2
|
1
|
3
|
Fallet/Fogueteiro (2011)
|
4
|
2
|
2
|
Morro dos Prazeres (2011)
|
3
|
3
|
6
|
São Carlos (2011)
|
8
|
4
|
9
|
Mangueira/Tuiuti (2011)
|
6
|
4
|
12
|
TOTAL
|
85
|
77
|
133
|
8) Como
se pode defender uma organização estatal que se mostra totalitária porque pode
tudo sem prestar contas, e ainda zomba da situação, como registra a companheira
de Amarildo? Como defender uma organização que ameaça a família que busca o
paradeiro de Amarildo? Como se pode defender uma organização que, até 14 de
julho, era responsável pela permissão de eventos culturais, artísticos e de
lazer, segundo Resolução 13/2007, o que na prática proibiu quase todos os
eventos realizados antes da ocupação? https://s3.amazonaws.com/meu-rio-production/Resolucao+SESEG+013+-+23.01.2007+-+atuac%CC%A7a%CC%83o+o%CC%81rga%CC%83os+de+Seguranc%CC%A7a+em+eventos+divertimento+pu%CC%81blico.pdf
Como se pode defender uma organização que manda prender, soltar, bater e matar,
como um reles traficante?
9) Todo
esse descalabro de procedimentos e práticas revela que, mesmo ela “prove” no
final do processo (sic!) que não foi um policial que puxou o gatilho, fica a
constatação de que, no mínimo, foi a policia que mirou e ordenou que o gatilho
fosse puxado ou ela puxou junto (ela puxou!). O caso Amarildo expõe a política
dos desaparecimentos, a política do genocídio financiada e executada pelo
Estado, que institucionalmente se expressa na farsa dos autos de resistência. http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,amarildos-onde-estao,1067443,0.htm.
Todo esse descalabro legal de procedimentos releva, no fundo, uma ordem institucional
de procedimentos cujo intuito é o genocídio, o cerceamento e a limpeza social,
com evidente relação com os eventos esportivos e os interesses da especulação imobiliária.
Não esqueçamos a proposta feita de cercar 11 favelas. http://nossorio.wordpress.com/2009/04/07/muro-do-cabral-ou-campos-de-concentracao-ou-auschwitz-a-solucao-final/
10) Ao não responder essas questões, ao
silenciar-se sobre o conteúdo e forma da confusão de policiais entre Amarildo e
o suposto traficante, ao silenciar-se sobre a totalização da vigilância e
controle militar sobre as comunidades, ao silenciar-se sobre a intervenção
policial que leva o “suspeito” à unidade militar e não à delegacia civil, ao
silenciar-se sobre o caráter de um interrogatório (convenhamos que não existe
averiguação sem interrogatório) realizado por policiais militares dentro de um
batalhão militar sem direito do interrogado ao mundo externo, inclusive o de
não ser torturado (desculpe-me, mas um pobre, preto e favelado dentro de uma
unidade militar rodeado por policiais militares sem acesso a ninguém é picanha
para pitbull), o secretário pop tecnoburocrata, que paga de humanista em
corridas financiadas pelo governo para fazer propaganda das UPPs, e o
governador gangstar, estrela
decadente da quadrilha do travesseiro, também puxaram o gatilho, e continuam sadicamente
a puxá-lo. Eles mataram Amarildo porque construíram uma política militarista e
fizeram propagandas e mais propagandas com o militarismo sádico que sacia aqueles que acreditavam em um novo Rio de Janeiro. Eles mataram Amarildo da
mesma forma que Hitler matou Anne Frank, mesmo que Anne não tenha morrido por
uma bala. Eles mataram Amarildo porque tudo o que o Estado fez naquela noite o
levou à morte, ou melhor, tudo o que o Estado fez o matou!!! O Estado continua
matando Amarildos!!! As perguntas corretas hoje são “Onde está Cabral?” e “Onde
está Beltrame?”. Eles precisam ir a Nuremberg!!! E que não levem como
testemunha o Freury!