quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Mais Médicos deveria ir para o MEC!


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O Programa Mais Médicos, recentemente lançado pelo governo federal, sofre ataques das entidades médicas e de setores conservadores. Até então, a acusação principal vinha no sentido de indicar que o programa não solucionaria o problema da saúde no Brasil, o que é verdade. Hoje as acusações dos conselhos e associações de médicos vão ao encontro de uma suposta formação deficitária do médico cubano, já que os portugueses, argentinos e espanhois, que vieram na primeira leva, estão nesse momento esquecidos na crítica corporativa.


Por que foram esquecidos? A resposta, seja lá qual for, passa pelo viés ideológico e político. Se até então o problema era o médico estrangeiro, agora o objeto da crítica é o cubano. Sem entrar no mérito da xenofobia remanescente da Guerra Fria que surpreendentemente povoa mentes e corações da elite branca brasileira, para alguns mais sinceros, o problema central agora é a raça e o que essa raça significa politicamente na composição social brasileira, denotando a existência de uma relação de poder de dominação que aos olhos dos mais sinceros e insinceros está sendo flexibilizada pela quebra do monopólio da raça branca à profissão sonhada.

O símbolo é forte: médico. Quando se pensa em um médico, vem à cabeça de todos, inclusive a minha, um cara branco de gel no cabelo com jaleco branco, mesmo que meu médico nos últimos dois anos no posto público de saúde seja um peruano ou boliviano de traços indígenas com jaleco azul claro ou verde claro – nunca consegui identificar precisamente porque ele não acende todas as luzes da sala de atendimento. O médico inegavelmente é poderoso. Senti no tratamento que estou fazendo. Estou com colesterol alto. O médico solicitou que fizesse exercícios e mudasse a alimentação. Fiz. Voltei ao posto para refazer o exame, como ele havia solicitado quando da prescrição. Está escrito no meu prontuário que devo refazer o exame. É só autorizar. Mas tive que marcar uma nova consulta com três meses de intervalo porque o médico e somente o médico poderia remarcar formalmente o exame no sistema. Argumentei a um enfermeiro que um enfermeiro poderia fazê-lo, que não havia necessidade de passar novamente pelo médico para ele não olhar na minha cara e autorizar um exame simples em menos de um minuto, que isto é desperdício de dinheiro e tempo. Argumentei que era só clicar (o sistema é informatizado). Nada adiantou. Qual é o nome disto? ATO MÉDICO. Percebi que tudo gira em torno do ato do médico, que nada no posto de atenção primária ocorre sem um ato do médico. Ou seja, as ações dos outros profissionais são consequências do ato do médico. Difícil pensar em equipe multidisciplinar assim... Entendi o termo e o poder institucional do médico, que estrutura a burocracia do posto que sou atendido. Atrasei três meses o exame por causa de uma autorização formal porque o médico e somente o médico pode autorizar no sistema. Então, é um profissional cheio de poder institucional, inclusive aquele mais inútil, como o meu patético exame de colesterol. Esse poder institucional não foi conquistado sem a consolidação de um poder político e social mediado por uma construção ideológica.

Quanto ao programa, a priori sou contra, mas a posteriori sou ou tornei-me – não sei o que é correto – favorável com reservas, mesmo sem nada ter mudado substancialmente no programa. Sou contra porque o programa não passa de uma ação que contradiz toda a política de saúde construída no governo Dilma. No início do ano, Dilma discutiu com os donos dos planos de saúde a universalização dos planos privados para toda a população mediante renúncia fiscal (modelo estadunidense), calcada fetichismo do poderio financeiro da classe média C. Depois da grita de entidades ligadas ao SUS, ela e Padilha recuaram. Antes, Dilma vetou artigo que obrigava o Estado brasileiro a investir 10% do orçamento da União em Saúde, ficando nos parcos 3% de investimento em saúde pública. Lembro-me de uma entrevista que Padilha é confrontado com uma gravação de Jatene na qual este dizia que não há possibilidade de melhorar a saúde pública sem aumentar o investimento público. Padilha, logo após a exposição da gravação, refutou esse argumento, afirmando que poderia melhorar o SUS com melhoria de gestão. Qual é a diferença com o Choque de Gestão de Bresser-Pereira? Ainda daria para colocar no mesmo saco a restituição do imposto de renda como forma de financiamento aos planos privados de saúde, algo que Dilma nem cogita retirar, e a tentativa dela de privatizar os hospitais universitários ligados às universidades federais com a criação de uma empresa terceirizadora – Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh)Enfim, toda a política do governo federal até junho caminhava à privatização, à terceirização e ao congelamento dos recursos públicos no SUS.

O programa Mais Médicos surge em afogadilho às manifestações de junho, mesmo que já tivesse sido gestado antes de junho. Foi apresentado quando Dilma necessitava criar medidas que viabilizassem sua reeleição em meio à queda dos índices de aprovação. Pode-se dizer que o programa é por ora uma ação que contradiz hipocritamente a política estatal para a saúde, ou, com boa vontade, pode ser entendido com um ponto de inflexão à política privatista de então. Boa vontade porque ela não acena tocar no vespeiro da relação saúde privada com saúde pública e saúde privada com recursos públicos.

Não vi os conselhos atacarem o governo federal sobre os pontos acima discriminados com a mesma efusão de sentimentos e vontade. Para ser sincero não vi. A questão da privatização, por exemplo, sequer mereceu qualquer notinha mequetrefe. Quando o Padilha disse que poderia discutir a instituição de um plano de carreira ao médico com as mesmas prerrogativas do juiz, após comparação do Conselho Federal de Medicina com planos de carreira que considerava razoáveis, achei que os médicos entrariam de cabeça, corpo e alma nessa pauta. Que profissional não entraria? Mas quando Padilha propôs teatralmente – porque sabia que seria ignorado e seu tom professoral nas entrevistas indica isto, além dessa política se opor aos interesses dos planos privados, financiadores de campanha – que exigiria dedicação exclusiva, como é exigida ao juiz, o que significaria não mais clinicar em consultórios particulares, o recuo dos conselhos demonstrou que parte de sua defesa, que se alicerça no ideário pragmático de sua base conservadora, estava e está na defesa do status quo do médico. Sei que há muitos médicos militantes que discordam do programa e do conteúdo corporativista da defesa dos conselhos, mas são minoria, infelizmente, porque se fossem ouvidos, tenho convicção que esse debate pautado na xenofobia e no racismo seria substituído por um debate centrado na instituição de um sistema universal de saúde com centralidade no trabalho, em todos os sentidos, do usuário ao trabalhador da saúde.

Entretanto, as consequências políticas da chegada dos médicos ao embate ideológico foram interessantes, as mesmas quando da introdução de cotas sociais e raciais. Vamos relembrar: dizia-se quando da introdução das cotas sociais e raciais que os estudantes cotistas possuiriam formação deficitária, e por isso seriam os responsáveis pela diminuição da qualidade do ensino superior público.  Alguma coincidência? Nenhuma, é o mesmo apreço farisaico pelo fantasma do mérito como instrumento de seleção social, em que eles fazem parte da elite porque merecem pertencer à elite. É uma construção ideológica, que no caso das cotas, foi derrubada por pesquisas que demonstravam o mérito acadêmico dos alunos cotistas igual ou superior ao mérito acadêmico dos alunos não cotistas.

Nem dá para entrar no mérito do Revalida, porque se os cubanos não o fazem, os brasileiros também não, o que invalida o raciocínio pseudológico e medíocre dos conselhos sobre a avaliação como parâmetro de validação de conhecimento e eficiência, porque simplesmente não há possibilidade de comparação. Também não dá para entrar no mérito do discurso do voluntarismo cego que o médico deveria ter. Se um professor não deve tê-lo, não deve assumir jornada de 65 horas (como propõe o governo estadual paulista) porque deve defender sua carreira e jornada de trabalho, o médico, enfermeiro ou qualquer outro trabalhador também não. Aliás, o discurso que parte da esquerda embarcou é vergonhoso, no mínimo, relacionando o médico a uma disposição de vida franciscana, a uma figura messiânica.  Contudo, também não dá para aceitar a seco o discurso hipócrita dos médicos, de que eles não vão para o interior porque não há infraestrutura. Há muitos postos de saúde bem aparelhados no interior, no norte e nordeste, assim como há muitos postos improvisados, e os dois tipos de postos estão vazios no interior, no norte, no nordeste e, inclusive, nas periferias das grandes cidades. Os médicos não vão porque não querem perder o padrão de vida que uma cidade grande proporciona, onde normalmente cresceram e viveram, ou não querem andar de carro por uma ou duas horas para ir à periferia quando podem perder 20 minutos em um posto mais central. E esse problema não se resume aos médicos. Isso só se resolveria com um plano de carreira único e geral, pauta que os conselhos de médicos fugiram.

Fugiram por quê? Porque trabalham no setor privado, onde ganham mais e sempre ganharão mais, porque se não ganharem mais o setor privado entrará em falência por falta de médicos. Simples! Então como se resolve? Decidindo: não há sistema misto em lugar nenhum do mundo. Ou há países com saúde pública universal (Social-democracia europeia) que permite residualmente a oferta de saúde privada ou países com saúde privada (EUA) que oferece residualmente e bem residualmente saúde pública, que é o caminho que o Brasil parece está trilhando. No primeiro caso há universalidade com qualidade. No segundo a saúde de qualidade é oferecida aos que podem pagar, portanto não é universal. O setor público transforma-se em um atendimento pobre para pobre. O sistema brasileiro está no meio do caminho, pendendo para o setor privado, que suga recursos públicos do SUS e dá vazão à ideologia construída desde a década de 1990 da qual o SUS é para quem não pode pagar um plano de saúde privado, portanto é resto. Se o objetivo é uma saúde universal e de qualidade, como apregoa a constituição federal, a resolução, portanto, passa pelo fim da saúde privada ou suplementar, o que está a quilômetros da cabeça de Dilma, Padilha, conselhos de médicos, elite e classe média, e pela regulamentação da carreira do médico, impingindo-lhe plano de carreira rígido e nacional. A bem da verdade, em um país de dimensão continental, professor, médico e enfermeiro deveriam ter um plano de carreira rígido e nacional, que possibilitasse cobrir com esses profissionais todos os pontos hoje descobertos. Se bancário do Banco do Brasil é assim...

O programa, sem querer querendo, ataca um ponto que estava adormecido na sociedade brasileira: a reprodução da elite por meio da profissão. A imagem de negras e negros de jaleco branco ataca o imaginário racista da elite branca. Ataca a ideologia do médico como profissional bem-sucedido, porque negras e negros não são bem-sucedidos nas relações brasileiras de poder. Ataca a ideologia do médico como reserva de mercado da elite branca, como instrumento de dominação política e ideológica. Alguém viu esse pessoal defendendo a PEC das domésticas com a mesma vontade que acusa o programa Mais Médicos de trabalho escravo? Alguns que gritam contra o programa foram até contrários à PEC das domesticas! É realmente cômico ouvir desse zé povinho acusações de que os médicos seriam escravos. 



Essas reações indicam que médicos com cara de empregadas, mendigos, garçons, flanelinhas, jardineiros, podem ser educativos. Se não, podem pelo menos explicitar de vez o que é a elite brasileira, racista, preconceituosa e sem princípios. Como diz Maquiavel, o preconceito tem mais raízes do que os princípios. As declarações estúpidas e os corredores poloneses dessa elite corroboram a máxima.

L.F.S.

Um comentário:

  1. Todo o texto nos faz refletir. Porém, a pérola de Micheline Borges é estarrecedora! Essa declaração demonstra, além do preconceito exacerbado, uma imensa limitação do ponto de vista do conhecimento, afinal Micheline, pensa você que na África do Sul não há médicos ou elite? Pela lógica colocada, negros tem uma cara específica. Espero que esta defensora da elite arcaica brasileira não seja realmente jornalista como ouvi, pois ela não tem cara, e, principalmente, não tem racicínio para tanto.

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