sábado, 30 de agosto de 2014

Os paradoxos não tão grandes de Marina


Ainda não fiz a leitura a contento do Plano de Governo da candidata Marina Silva, indo e voltando com esmero, mas confesso que fiquei estarrecido com a leitura de alguns eixos. Apreciei alguns, como os 10% do PIB em Saúde, o reconhecimento do papel ínfimo da União no financiamento e responsabilização da educação básica e outros. Mas, quando vistos de forma contextualizada, esses itens deixam de fazer sentido.
Impossível não atestar a inaplicabilidade das metas estabelecidas, além do esvaziamento político de algumas pautas históricas caras aos movimentos sociais, como as da educação. Digo isso pelos princípios macroeconômicos que fundamentam todo o programa, revelando o mesmo economicismo neoclássico que acomete a todos os candidatos midiáticos, com menor intensidade à candidatura do PT e maior ao candidato do PSDB, o qual brada ao mercado financeiro – ente metafísico sem rosto – que Armínio Fraga será seu Ministro da Fazenda caso seja eleito como se pedisse pelo Amor de Deus para que não seja abandonado. Faz todo o sentido. O mercado financeiro escolheu a sua bola da vez: Marina Silva.
Mas que é o mercado financeiro? Segundo o IPEA, são 20 mil famílias que subtraem, para não falar roubam, metade do orçamento da União por meio do pagamento dos juros da dívida pública.
O seu encontro com acionistas, vulgo especuladores, prometendo regras afeitas à fome voraz do mercado financeiro demonstram o estabelecimento de bases firmes em seu programa. Nada contra. Se ela assumiu uma perspectiva neoliberal de Estado Mínimo, é justo, desde que explicite e não seja tratada como uma alternativa nova, porque já experimentamos o remédio amargo das políticas neoliberais, dentre as quais a desindustrialização dos últimos 30 anos e a diminuição do investimento público em direitos sociais e infraestrutura. Não é para menos. Com tantos juros, como sobrar para essas questões pequenas?
A leitura dos eixos 1 e 2 explicita como pornografia que o receituário neoliberal está mais forte do que nunca do programa da Marina Silva.
A política macroeconômica de Marina tem três eixos: 1) controle da inflação; 2) geração de superávit primário; 3) taxa livre de câmbio.
1) trabalhar com metas de inflação críveis e respeitadas, sem recorrer a controle de preços que possam gerar resultados artificiais, e criar um cronograma de convergência da inflação para o centro da meta atual;
2) gerar o superávit fiscal necessário para assegurar o controle da inflação − a médio prazo, os superávits devem ser não só suficientes como também incorporados na estrutura de operação do setor público, de tal maneira que possam ser gerados sem contingenciamentos.
3) manter a taxa de câmbio livre, sem intervenção do Banco Central, salvo as ocasionalmente necessárias para eliminar excessos pontuais de volatilidade, com vistas a sinalizar para o mercado que políticas fiscais e monetárias serão os instrumentos de controle de inflação de curto prazo (p. 43).

Hayek e os Chicaco Boys obtiveram orgasmos tão fáceis que podem ser considerados ejaculações precoces. Para entender os itens acima arrolados, deve-se relacionar com uma notícia recente, o imbróglio entre Giannetti e a Unicamp, mais especificamente a Faculdade de Economia. Pode parecer verborragia acadêmica, mas não é. É didático.
Giannetti envolveu-se em uma polêmica ao defender o ensino pago nas universidades públicas, afirmando que a Unicamp é uma cria da Ditadura. Verdade. A Unicamp é uma universidade que procurou, desde o início, conciliar pesquisa com produção. Aliás, todas as universidades públicas são crias da ditadura, forjadas pela departamentalização da Reforma Universitária de 1968. Mas a crítica não era à Unicamp, mas à Faculdade de Economia e à sua grade ou matriz curricular. Segundo Giannetti, como prova da relação da Unicamp com o regime militar, os economistas da instituição seguiriam referenciais ultrapassados, como o keynesianismo e o marxismo. Luiz Gonzaga Belluzzo, Ricardo de Medeiros Carneiro, André Biancarelli e Pedro Rossi redigiram uma carta de protesto ou repúdio, intitulado Eduardo Giannetti e a intolerância de um liberal.
O problema de Giannetti consiste no fato de que a faculdade priorizaria pensamentos diversos daqueles apregoados pela crença liberal, ou no de desqualificar o pensamento anti-liberal. Diante disso, restou ao liberal defender a instituição de ensino pago nas universidades públicas junto com outro guru liberal de Marina, algo que foi facilmente rebatido por Satafle em artigo que mostra que uma família que ganha R$ 10 mil reais (renda classificada pelo IBGE em pesquisa recente sobre ocupações na cidade de São Paulo como super-ricos) com dois filhos teria que escolher um dos filhos, como acontece no Chile.
  Bem, o preâmbulo foi feito apenas para revelar que a equipe econômica de Marina é repleta da mais intolerante escória do liberalismo, a qual o trata como ato de fé. Mas a fé, como toda crença, é material, e tem relações com a realidade concreta. Defender controle inflacionário de forma estanque e intransigente em uma meta é defender a impossibilidade de se estabelecer uma política que não esteja fora dos marcos do Estado Mínimo, portanto, do liberalismo. Aliás, essa meta inflacionária ninguém vota, supostamente é aferida por medidas técnicas de economistas influenciados pela literatura liberal e pelo mercado financeiro, além dos organismos multilaterais e empresas de avaliação econômica que dão notas aos países, enfim, por uma democracia autocrática que envolve a dita autonomia do Banco Central. Essa meta surge do nada para as novas vidas, mais ou menos como o fetichismo da mercadoria para o indivíduo.
Diante do controle inflacionário, para que serve o Superávit Primário? Superávit Primário é uma economia que o país faz para pagar os juros da dívida pública e honrar os contratos. Mas quem mesmo são os donos dos contratos e os recebedores do bônus da dívida pública? As 20 mil famílias, segundo o IPEA. A verdadeira elite.
Não à toa o respeito ao contrato é a tônica central dos eixos. Ora, mas não vamos poder nem ler os contratos? Fazer uma auditoria, como fez Equador, que atestou que tinha até contrato prescrito? A Marina Silva nunca será confrontada com a sua política econômica pela mídia, simplesmente porque a mídia concorda com a sua política econômica.
 Por fim, o cambio livre. Bem, a discussão sobre o melhor valor do dólar é uma redundância sem fim. O principal é que, quando o dólar sobe os “investidores” adoram. Sim, com as condições brasileiras e o controle das 20 mil famílias sobre o mercado financeiro, não controlar o câmbio significa com o tempo em subida do dólar.  Sem fé liberal, mas achar que tudo é uma relação inversamente proporcional entre oferta e demanda é ingenuidade. Vamos lá ao que sempre acontece: quando os investidores preferem dólar e o compram, o dólar falta no mercado. O valor da moeda sobe e... advinha, a dívida cresce, sim, a mesma dívida que eles recebem por meio dos títulos dos juros.
    Essa política reconhecidamente impede o investimento em políticas públicas e sociais porque o arrocho passa a ser norma da administração pública. Os culpados em seguida passam a ser o servidor público e a “máquina inchada”, ou a “previdência social”, induzindo estruturalmente a reformas que retiram direitos, como o Plano de Complementação Previdenciário para os Servidores Federais no governo Lula/Dilma, ou o arrocho salarial dos aposentados e do salário mínimo na década no governo FHC.
    Ideologicamente o Estado passa a ser o grande vilão, mais ou menos como o é para o Pastor. O Plano de Marina está recheado de chavões como “o governo deixará de ser controlador dos cidadãos, para se tornar seu servidor. Deixará de ver o setor público como o criador da sociedade. O Estado tem de servir à sociedade, e não dela se servir”. Poderia até ser uma frase boa por si, mas com os princípios macroeconômicos explicitados, contextualizando-a, transforma-se em uma frase conservadora.  Bresser-Pereira soltava a mesma pérola no MARE (Ministério da Reforma do Estado) quando qualificava os serviços não-exclusivos do Estado.
    O Plano retoma nas páginas seguintes a mesma ladainha liberal do controle da inflação, autonomia do Banco Central e a restauração da meta inflacionária como horizonte único do órgão e (pérola) a reconquista da “confiança dos agentes no governo e nos dados por ele apresentado”. Ladainha medíocre da mídia e do mercado financeiro, de que um bom governo é aquele que os agentes econômicos – leia-se mercado financeiro – confiam. Contudo, só confiam se implantam os três pilares: controle inflacionário com Banco Central autônomo, superávit primário fiscal e cambio livre.
    A mesma ladainha apregoada pela mídia e o mercado financeiro sobre o baixo crescimento é repetida. Não há crises ou fim de ciclo de crescimento ou de um modelo – o que é uma outra discussão que não é objetivo do presente texto, mas adianto que a alternativa não é o liberalismo mais tosco, velho e carcomido apresentado como o novo à la Collor pelo programa de Marina Silva –, mas somente inadequação de políticas governamentais:
O impacto parece estar mais relacionado à inadequação da gestão das políticas macroeconômicas. Economistas não ligados ao governo, por sua vez, apontam como geradores do descontrole inflacionário os seguintes pontos: elevação do déficit público; perda da credibilidade do setor público em estatísticas relevantes para mostrar preocupação com a inflação; perda de credibilidade das sinalizações de expectativas, pois o teto da meta hoje funciona como a meta efetiva; falta de compromisso do Banco Central, outro componente da perda de credibilidade; e falta de autonomia operacional do BC (p. 45).

         Só que o Plano de Marina vai além. O liberalismo dela é tão incrustado que não vislumbra a intervenção do Estado nos preços, nem subsidiando, pois ela corrigirá “os preços administrados que foram represados pelo governo atual, definindo regras claras quando não existirem” (p. 46). Também propõe a criação de um Conselho de Responsabilidade Fiscal que verifique o cumprimento das “das metas fiscais e avaliar a qualidade dos gastos públicos”.
        Bem, o prefeito que já se deparou com a LRF sabe que a única proibição efetiva que existe é a contratação de servidores, cuja lei o induz a terceirizar, o que vem ocorrendo muitíssimo com pequenos municípios e copiados levianamente por municípios que tem muito dinheiro, como Ribeirão Preto, por exemplo. Não vou entrar no mérito, mas a LRF, com o atual pacto federativo e com um país repleto de municípios pequenos sem orçamento, foi um dos maiores retrocessos de sua história recente, pois permitiu a expansão da hoje enorme rede de prestadores de serviços ao Estado, das Parcerias Público-Privada (PPP) e da queda da qualidade dos serviços públicos.
      Chavões sobre a carga tributária são repetidos acriticamente, como “a carga tributária tem se mantido em nível elevado no Brasil e atingiu mais de 37% do PIB em 2013”, mas não há referência sobre a injustiça dela. Pelo contrário, a carga tributária é quase sempre discutida relacionando-a com a máquina pública federal, em que a carga tributária só diminuirá com o aumento da eficiência da máquina pública. Com isso, resta a promessa:
O mesmo nível de gastos deverá gerar mais e melhores serviços. Vamos ampliar significativamente a produtividade da máquina a fim de equipará-la à taxa média dos países desenvolvidos. Se conseguirmos que o aumento da arrecadação per capita no país fique abaixo do crescimento do PIB per capita, reduziremos a carga tributária e aumentaremos os serviços prestados à população. Somando-se isso à elevação da produtividade do setor público − incluindo aí o combate à sonegação −, ampliaremos os serviços de forma sensível, mesmo com menor carga tributária e com decréscimo da participação da receita do governo no PIB (p. 19).

  Há uma pequena seção na página 16 destinada à Justiça tributária, mas não há qualquer menção enfática ao fato de se fazer uma reforma tributária que taxe mais os ricos dos que os pobres, mas um termo que o plano chama de “equidade na distribuição de recursos públicos”. A menção é sobre uma taxação que impeça a guerra fiscal entre estados e municípios.  Na página 51 há uma seção para a Reforma Tributária, mas o título já evidencia o alcance reduzido: “Reforma tributária: compromisso com a não-elevação da carga e com a justiça; redução dos impostos sobre faturamento de empresas; desoneração de investimentos; desarme da guerra fiscal”. Portanto, a reforma tributária defendida privilegia os ricos.

    Bem, poderíamos afirmar que tal perspectiva fica reduzida à política macro-econômica, deixando as políticas públicas isentas ou intocadas. Não, é impossível. Se há preponderância dos ditames do mercado financeiro, é obvio que o arrocho vai para as políticas públicas.



Não precisa ser um Holmes para entender. Se aumentar o comprometimento orçamentário com os títulos dos juros da dívida pública, tem que retirar de algum canto. Pelo esquema acima, não é difícil entender porque a Previdência é sempre um problema, um déficit perpétuo. Costuma ser nesse momento que os mesmos economistas aparecem com as suas metáforas de “lençol curto” ou “pensar como uma dona de casa”.
  Mas é preciso salientar que a ideologia do Estado Mínimo está também em alguns programas sociais. Vejamos educação. Na educação, o Estado Mínimo se expressou pelas políticas gerenciais, em que os professores são avaliados por dados quantitativos comparáveis dos alunos, no qual o docente transforma-se em um ser heterônomo, dependente das avaliações do Estado. Esse tipo de modelo destrói qualquer perspectiva de trabalho coletivo e participação da comunidade escolar, sobretudo quanto ao processo de empoderamento.
     Bem, logo de início leio no programa da educação:
Criar uma política de responsabilização por resultados da educação, aperfeiçoando os indicadores que compõem o Sistema Nacional de Avaliação da Aprendizagem da Educação Básica.
Estabelecer medidas múltiplas de qualidade para incluir novos indicadores relativos à escola, aos professores e aos alunos.
Analisar e monitorar os instrumentos de avaliação para efetuar os ajustes e redirecionamentos necessários (p. 102).

  Criar uma política de responsabilização por resultados, um mecanismo ranqueador e barato de estimular a competitividade de notas e frequência é justamente o oposto o que defende os movimentos sindicais e sociais da educação. Diga-se de passagem, boa parte do texto sobre educação direciona-se à gestão e, quando direciona para os professores, debatendo o combalido salário docente, o Plano, coerentemente com os princípios do Banco Mundial e com a sua linha liberal, propõe o bônus nacional. Isso mesmo, o bônus nacional. A União complementaria o salário, mas como conseqüência da avaliação. Tá aí uma política de responsabilização.

Compor o valor final do salário de duas formas. A primeira metade da majoração salarial será implantada gradualmente, na proporção do crescimento do orçamento federal para educação em relação ao PIB, em conformidade com o PNE. A segunda metade será vinculada ao cumprimento de metas de desempenho em sala de aula, aos resultados do Exame Nacional para Docentes, à participação em cursos de formação continuada e à docência em escola integral (p. 110).

  Em outras palavras, o Plano propõe a implantação nacional do bônus por meio da criação de uma Prova Nacional para Docentes. Ou seja, a avaliação do docente não é feita no seu local de trabalho, com participação da comunidade escolar, contextualizando o seu trabalho. É feito por uma prova, nos mesmos moldes da política educacional do PSDB no Estado de São Paulo. Com coerência teórica incrível, o gerencialismo também se faz presente na escolha de diretores. A escolha de diretores e coordenadores dar-se-ia por meio de processo que “incentiva” (sim, esse é o termo) a participação das comunidades, mas a escolha seria através de “um comitê para identificar profissionais e provas de seleção”. As empresas prestadoras de serviço em educação para municípios (são mais de 5.000, imagine) estão pulando de alegria.
   Essas são algumas das contradições encontradas. Foquei na relação economia e educação porque sou da área, mas isso poderia ser tranquilamente transpassado para a sua política externa, quando ela objetiva a aproximação com a Aliança do Pacífico, uma espécie de resto da Alca criada em 2012 pelos países latino-americanos que os liberais contrapõem à UNASUL e ao Mercosul. A bem da verdade, sinto por muitos militantes que estão sendo enganados por essa ladainha liberal, mas o plano é honesto e translúcido. É liberal em essência, do começo ao fim, sem tirar nem por. Pode ser que avance em alguns pontos, mas a essência é a Reforma Gerencial atrelada ao Estado Mínimo, que vai de promessas a pagamento de mensalidades em universidades a bônus para professor de educação básica. Nesse sentido o plano é honesto, pois ele se propõe a diminuir o Estado através de uma política de resultados e metas.
     Marina Silva pode até ter se confundindo no debate com o termo elite, como muitos querem acreditar, mas que o programa dela é de elite, não há a menor dúvida.


L.F.S.