A histeria do linchamento
Relutei em escrever esse texto. Relutei porque confesso que
mexeu com o que de há mais primitivo em mim. Consegui reprimir-me no caso do
preto amarrado no poste, do preto doido linchado e morto, da preta favelada
arrastada por policiais, mas da parda que teve um dia de preta não teve jeito.
Acumulou!
Quando voltava do trabalho agora, pensando no acúmulo, vi um
velho preto remexendo o lixo na rodoviária, às 22h45m. Andei até o carro de
minha esposa, que me esperava, e um branco maltrapilho pediu-me um real para
completar uma marmita. Alertei-o de boa-fé que teria dificuldade de encontrar
comida no horário. Ela desconfiou que eu estivesse desconfiando dele e disse
que não gastaria em “bobagens”. Pegou o um real e saiu correndo na direção do
restaurante onde disse que estaria aberto. Virei e entrei no carro de minha
esposa. Sentei.
Quanta violência. O homem falou bobagens porque pensou que eu
tivesse insinuado que usaria em drogas. Como deve ser difícil pedir esmola
nesse mundo cristão. Voltei meus
pensamentos ao acúmulo. É um acúmulo, mas esse último caso me chamou a atenção
pelos fatores envolvidos.
Vamos aos fatores.
Primeiro fator: uma mulher é acusada de raptar crianças para
fazer “magia negra”. Não pude deixar de pensar no papel da “magia negra” no
caso. Não pude deixar de pensar que a “magia negra” cumpriu um papel importante
para o ato, pois se a mulher supostamente estivesse recrutando crianças para
evangelizar, tendo a achar que ela não seria espancada. Mas o que seria “magia
negra”? Magia negra é o nome que o cristianismo delegou às religiões de matriz
africana. A rigor, para um bom cristão, qualquer coisa que verse com qualquer
crença ou ritual de religiões de matriz africana, é “magia negra”. Isso me faz
concluir que boa parte dos assassinos era composta por bons cristãos. Note-se que “magia negra” é algo tão
sub-reptício quanto à “bruxaria” na Idade Média. Note-se que o mesmo comportamento não é visto
com as denúncias, muitas comprovadas, sobre os padres pedófilos.
Segundo fator: todos os bons cristãos ficaram sabendo da
atitude pecadora da mulher por meio de uma página no facebook, chamada Guarujá
Alerta. O nome me chamou a atenção. Alerta, como nos programas policialescos da
televisão aberta. Os exemplos são
muitos, sendo o mais conhecido o programa Cidade Alerta. Mas não podemos
esquecer o Brasil Urgente, no caso, sinônimo de alerta. Não sei o que se costuma
publicar nessa página, mas o nome me passa a impressão que a página tem a
função de alertar à população do que é ruim. E o que seria ruim? Crimes, ou
supostos crimes. Mas não é só isso. Alertar à população boa sobre o ruim, alertá-la para que a bondade da família continue intacta.
Terceiro fator: o assassinato foi gravado. Isso, antes de
qualquer coisa, revela o sentimento não somente da impunidade, mas o da certeza
da correção, qual seja, o de que a lição pseudopopular seria comungada por todo
e qualquer brasileiro, normalmente bom cristão, que adora a justiça com as
próprias mãos e compra um cantinho no céu a suaves prestações. O sentido é o de
bom e justo, caso contrário não se gravaria, caso contrário, a população impediria o massacre, porque o justo passaria a ser o
contrário.
Como os três fatores se relacionam? Bem, os bons cristãos
acham que o mundo está tomado de injustiça e de pecado e se autoproclamam, como
bons guerreiros templários, guardiões da moral e dos bons costumes, saindo de
armas em mãos atrás dos injustos e pecadores. Criam patrulhas de moralização
social, mais ou menos como a Liga das Senhoras Católicas antes de 1964, e as
materializam em programas e páginas no facebook, onde o objetivo é alertar os
bons cristãos das injustiças e dos pecados, denunciando, quando possível, os
injustos e os pecadores. Como um bom cristão, tal qual um que grita mais para o
carrasco que desmembra algum pecador no pelourinho, vai para a ação, grita
morte, adora o sangue a escorrer e a misturar-se na terra, e berra, mais, mais,
mais. Morrer de uma vez? Não, morrer aos poucos, linchada, sofrendo as dores do
pecado (ai Foucault).
Registrar? Lógico. Registrar e retransmitir na internet
garante o sentimento de pertença e, pelo exemplo, transmite poder ao ato de
forma ininterrupta. Não há mais
necessidade de praça ou pelourinho (ai Foucault).
Esse último caso me fez entender melhor o processo de “justiça
com as próprias mãos”, como dizem os defensores, mais ou menos como os
milicianos se qualificavam e se qualificam, como grupos de defesa cidadã contra
os traficantes. Falarmos hoje em mediévico não é figura de linguagem muito
menos retórica vazia. É fato! Hoje, só faltou o Malleus Maleficarum.
Esses bem feitores ignoram toda e qualquer circunstância que
poderia dar-lhe algum princípio racional, ainda que de maneira infantilizada, como
o fato de nunca propor linchamento sozinho, ou nunca procurar linchar um
traficante ou um policial corrupto. Aliás, passa bem longe, como bom covarde.
Ignora que comete pecados às sextas-feiras, apesar de suavizá-los com as
prestimosas prestações e lamentações aos domingos. Ignora que não possui
provas. Ignora que deve chamar a polícia, se possuísse provas. É um ignorante,
não menor do que o ignorante que o defende, como Sheherazade
e Cia LDTA.
Mas não é
uma questão que se explica somente através dos linchadores. Eles foram
alertados, não somente pela página, mas pelos inúmeros programas que os alertam
de uma violência que é maior na consciência e subconsciência deles do que na
realidade, mesmo que exista e seja alarmante. Aliás, é uma das benesses da
televisão. Potencializar a realidade, mesmo que seja mais amena. Potencializar
a percepção da violência que grassa nas cidades, transformando o próprio
programa em realidade, em um ato ou em uma ode à violência.
Na
prática, é um pacto social, cuja subjetividade aponta os canhões para todo e
qualquer pecado, ou melhor, para quem o aparenta. Quanto mais preto e pobre,
mais ameaçador. Se for traficante ou policial corrupto, a covardia o paralisa, melhor
fechar os olhos e rezar. Essa ignorância medieval é seletiva. A nova ordem transforma o diferente em ameaça e, se o diferente estiver sozinho e a ordem em grupo, o grupo elimina o diferente, como um bom skinhead neonazista, mesmo que o grupo seja composto por pretos e pardos favelados.
Vivemos
tempos perigosos de caça aos homossexuais, caça aos negros, caça aos pobres,
caça aos adeptos de religiões de matriz africana, como o caso das casas de
candomblés e pais e mães de santo caçadas no Rio de Janeiro. A bem da verdade,
passamos essa fronteira de simples perseguição às minorias. Hoje se caçou uma
suspeita de ser bruxa.
L.F.S.