terça-feira, 6 de maio de 2014


A histeria do linchamento

Relutei em escrever esse texto. Relutei porque confesso que mexeu com o que de há mais primitivo em mim. Consegui reprimir-me no caso do preto amarrado no poste, do preto doido linchado e morto, da preta favelada arrastada por policiais, mas da parda que teve um dia de preta não teve jeito. Acumulou!

Quando voltava do trabalho agora, pensando no acúmulo, vi um velho preto remexendo o lixo na rodoviária, às 22h45m. Andei até o carro de minha esposa, que me esperava, e um branco maltrapilho pediu-me um real para completar uma marmita. Alertei-o de boa-fé que teria dificuldade de encontrar comida no horário. Ela desconfiou que eu estivesse desconfiando dele e disse que não gastaria em “bobagens”. Pegou o um real e saiu correndo na direção do restaurante onde disse que estaria aberto. Virei e entrei no carro de minha esposa. Sentei.

Quanta violência. O homem falou bobagens porque pensou que eu tivesse insinuado que usaria em drogas. Como deve ser difícil pedir esmola nesse mundo cristão.  Voltei meus pensamentos ao acúmulo. É um acúmulo, mas esse último caso me chamou a atenção pelos fatores envolvidos.

Vamos aos fatores.

Primeiro fator: uma mulher é acusada de raptar crianças para fazer “magia negra”. Não pude deixar de pensar no papel da “magia negra” no caso. Não pude deixar de pensar que a “magia negra” cumpriu um papel importante para o ato, pois se a mulher supostamente estivesse recrutando crianças para evangelizar, tendo a achar que ela não seria espancada. Mas o que seria “magia negra”? Magia negra é o nome que o cristianismo delegou às religiões de matriz africana. A rigor, para um bom cristão, qualquer coisa que verse com qualquer crença ou ritual de religiões de matriz africana, é “magia negra”. Isso me faz concluir que boa parte dos assassinos era composta por bons cristãos.  Note-se que “magia negra” é algo tão sub-reptício quanto à “bruxaria” na Idade Média.  Note-se que o mesmo comportamento não é visto com as denúncias, muitas comprovadas, sobre os padres pedófilos.

Segundo fator: todos os bons cristãos ficaram sabendo da atitude pecadora da mulher por meio de uma página no facebook, chamada Guarujá Alerta. O nome me chamou a atenção. Alerta, como nos programas policialescos da televisão aberta.  Os exemplos são muitos, sendo o mais conhecido o programa Cidade Alerta. Mas não podemos esquecer o Brasil Urgente, no caso, sinônimo de alerta. Não sei o que se costuma publicar nessa página, mas o nome me passa a impressão que a página tem a função de alertar à população do que é ruim. E o que seria ruim? Crimes, ou supostos crimes. Mas não é só isso. Alertar à população boa sobre o ruim, alertá-la para que a bondade da família continue intacta.

Terceiro fator: o assassinato foi gravado. Isso, antes de qualquer coisa, revela o sentimento não somente da impunidade, mas o da certeza da correção, qual seja, o de que a lição pseudopopular seria comungada por todo e qualquer brasileiro, normalmente bom cristão, que adora a justiça com as próprias mãos e compra um cantinho no céu a suaves prestações. O sentido é o de bom e justo, caso contrário não se gravaria, caso contrário, a população impediria o massacre, porque o justo passaria a ser o contrário.

Como os três fatores se relacionam? Bem, os bons cristãos acham que o mundo está tomado de injustiça e de pecado e se autoproclamam, como bons guerreiros templários, guardiões da moral e dos bons costumes, saindo de armas em mãos atrás dos injustos e pecadores. Criam patrulhas de moralização social, mais ou menos como a Liga das Senhoras Católicas antes de 1964, e as materializam em programas e páginas no facebook, onde o objetivo é alertar os bons cristãos das injustiças e dos pecados, denunciando, quando possível, os injustos e os pecadores. Como um bom cristão, tal qual um que grita mais para o carrasco que desmembra algum pecador no pelourinho, vai para a ação, grita morte, adora o sangue a escorrer e a misturar-se na terra, e berra, mais, mais, mais. Morrer de uma vez? Não, morrer aos poucos, linchada, sofrendo as dores do pecado (ai Foucault).

Registrar? Lógico. Registrar e retransmitir na internet garante o sentimento de pertença e, pelo exemplo, transmite poder ao ato de forma ininterrupta.  Não há mais necessidade de praça ou pelourinho (ai Foucault).

Esse último caso me fez entender melhor o processo de “justiça com as próprias mãos”, como dizem os defensores, mais ou menos como os milicianos se qualificavam e se qualificam, como grupos de defesa cidadã contra os traficantes. Falarmos hoje em mediévico não é figura de linguagem muito menos retórica vazia. É fato! Hoje, só faltou o Malleus Maleficarum

Esses bem feitores ignoram toda e qualquer circunstância que poderia dar-lhe algum princípio racional, ainda que de maneira infantilizada, como o fato de nunca propor linchamento sozinho, ou nunca procurar linchar um traficante ou um policial corrupto. Aliás, passa bem longe, como bom covarde. Ignora que comete pecados às sextas-feiras, apesar de suavizá-los com as prestimosas prestações e lamentações aos domingos. Ignora que não possui provas. Ignora que deve chamar a polícia, se possuísse provas. É um ignorante, não menor do que o ignorante que o defende, como Sheherazade e Cia LDTA.

Mas não é uma questão que se explica somente através dos linchadores. Eles foram alertados, não somente pela página, mas pelos inúmeros programas que os alertam de uma violência que é maior na consciência e subconsciência deles do que na realidade, mesmo que exista e seja alarmante. Aliás, é uma das benesses da televisão. Potencializar a realidade, mesmo que seja mais amena. Potencializar a percepção da violência que grassa nas cidades, transformando o próprio programa em realidade, em um ato ou em uma ode à violência.

Na prática, é um pacto social, cuja subjetividade aponta os canhões para todo e qualquer pecado, ou melhor, para quem o aparenta. Quanto mais preto e pobre, mais ameaçador. Se for traficante ou policial corrupto, a covardia o paralisa, melhor fechar os olhos e rezar. Essa ignorância medieval é seletiva. A nova ordem transforma o diferente em ameaça e, se o diferente estiver sozinho e a ordem em grupo, o grupo elimina o diferente, como um bom skinhead neonazista, mesmo que o grupo seja composto por pretos e pardos favelados.

Vivemos tempos perigosos de caça aos homossexuais, caça aos negros, caça aos pobres, caça aos adeptos de religiões de matriz africana, como o caso das casas de candomblés e pais e mães de santo caçadas no Rio de Janeiro. A bem da verdade, passamos essa fronteira de simples perseguição às minorias. Hoje se caçou uma suspeita de ser bruxa.

L.F.S.