O Programa Mais Médicos,
recentemente lançado pelo governo federal, sofre ataques das entidades médicas
e de setores conservadores. Até então, a acusação principal vinha no sentido de
indicar que o programa não solucionaria o problema da saúde no Brasil, o que é
verdade. Hoje as acusações dos conselhos e associações de médicos vão ao
encontro de uma suposta formação deficitária do médico cubano, já que os
portugueses, argentinos e espanhois, que vieram na primeira leva, estão nesse
momento esquecidos na crítica corporativa.
Por que foram esquecidos? A
resposta, seja lá qual for, passa pelo viés ideológico e político. Se até então
o problema era o médico estrangeiro, agora o objeto da crítica é o cubano. Sem
entrar no mérito da xenofobia remanescente da Guerra Fria que
surpreendentemente povoa mentes e corações da elite branca brasileira, para
alguns mais sinceros, o problema central agora é a raça e o que essa raça
significa politicamente na composição social brasileira, denotando a existência
de uma relação de poder de dominação que aos olhos dos mais sinceros e
insinceros está sendo flexibilizada pela quebra do monopólio da raça branca à
profissão sonhada.
O símbolo é forte: médico.
Quando se pensa em um médico, vem à cabeça de todos, inclusive a minha, um cara
branco de gel no cabelo com jaleco branco, mesmo que meu médico nos últimos
dois anos no posto público de saúde seja um peruano ou boliviano de traços indígenas
com jaleco azul claro ou verde claro – nunca consegui identificar precisamente porque
ele não acende todas as luzes da sala de atendimento. O médico inegavelmente é
poderoso. Senti no tratamento que estou fazendo. Estou com colesterol alto. O
médico solicitou que fizesse exercícios e mudasse a alimentação. Fiz. Voltei ao
posto para refazer o exame, como ele havia solicitado quando da prescrição.
Está escrito no meu prontuário que devo refazer o exame. É só autorizar. Mas
tive que marcar uma nova consulta com três meses de intervalo porque o médico e
somente o médico poderia remarcar formalmente o exame no sistema. Argumentei a
um enfermeiro que um enfermeiro poderia fazê-lo, que não havia necessidade de
passar novamente pelo médico para ele não olhar na minha cara e autorizar um
exame simples em menos de um minuto, que isto é desperdício de dinheiro e
tempo. Argumentei que era só clicar (o sistema é informatizado). Nada adiantou.
Qual é o nome disto? ATO MÉDICO. Percebi que tudo gira em torno do ato do
médico, que nada no posto de atenção primária ocorre sem um ato do médico. Ou seja,
as ações dos outros profissionais são consequências do ato do médico. Difícil
pensar em equipe multidisciplinar assim... Entendi o termo e o poder
institucional do médico, que estrutura a burocracia do posto que sou atendido.
Atrasei três meses o exame por causa de uma autorização formal porque o médico
e somente o médico pode autorizar no sistema. Então, é um profissional cheio de
poder institucional, inclusive aquele mais inútil, como o meu patético exame de
colesterol. Esse poder institucional não foi conquistado sem a consolidação de
um poder político e social mediado por uma construção ideológica.
Quanto ao programa, a priori sou contra, mas a posteriori sou ou tornei-me – não sei
o que é correto – favorável com reservas, mesmo sem nada ter mudado
substancialmente no programa. Sou contra porque o programa não passa de uma ação
que contradiz toda a política de saúde construída no governo Dilma. No início
do ano, Dilma discutiu com os donos dos planos de saúde a universalização dos
planos privados para toda a população mediante renúncia fiscal (modelo
estadunidense), calcada fetichismo do poderio financeiro da classe média C.
Depois da grita de entidades ligadas ao SUS, ela e Padilha recuaram. Antes,
Dilma vetou artigo que obrigava o Estado brasileiro a investir 10% do orçamento
da União em Saúde, ficando nos parcos 3% de investimento em saúde pública.
Lembro-me de uma entrevista que Padilha é confrontado com uma gravação de
Jatene na qual este dizia que não há possibilidade de melhorar a saúde pública
sem aumentar o investimento público. Padilha, logo após a exposição da gravação,
refutou esse argumento, afirmando que poderia melhorar o SUS com melhoria de
gestão. Qual é a diferença com o Choque de Gestão de Bresser-Pereira? Ainda
daria para colocar no mesmo saco a restituição do imposto de renda como forma
de financiamento aos planos privados de saúde, algo que Dilma nem cogita
retirar, e a tentativa dela de privatizar os hospitais universitários ligados
às universidades federais com a criação de uma empresa terceirizadora – Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh). Enfim, toda a
política do governo federal até junho caminhava à privatização, à terceirização
e ao congelamento dos recursos públicos no SUS.
O programa Mais Médicos
surge em afogadilho às manifestações de junho, mesmo que já tivesse sido
gestado antes de junho. Foi apresentado quando Dilma necessitava criar medidas
que viabilizassem sua reeleição em meio à queda dos índices de aprovação. Pode-se
dizer que o programa é por ora uma ação que contradiz hipocritamente a política
estatal para a saúde, ou, com boa vontade, pode ser entendido com um ponto de inflexão
à política privatista de então. Boa vontade porque ela não acena tocar no
vespeiro da relação saúde privada com saúde pública e saúde privada com
recursos públicos.
Não vi os conselhos atacarem
o governo federal sobre os pontos acima discriminados com a mesma efusão de sentimentos e
vontade. Para ser sincero não vi. A questão da privatização, por exemplo,
sequer mereceu qualquer notinha mequetrefe. Quando o Padilha disse que poderia
discutir a instituição de um plano de carreira ao médico com as mesmas
prerrogativas do juiz, após comparação do Conselho Federal de Medicina com
planos de carreira que considerava razoáveis, achei que os médicos entrariam de
cabeça, corpo e alma nessa pauta. Que profissional não entraria? Mas quando
Padilha propôs teatralmente – porque sabia que seria ignorado e seu tom professoral
nas entrevistas indica isto, além dessa política se opor aos interesses dos
planos privados, financiadores de campanha – que exigiria dedicação exclusiva,
como é exigida ao juiz, o que significaria não mais clinicar em consultórios
particulares, o recuo dos conselhos demonstrou que parte de sua defesa, que se
alicerça no ideário pragmático de sua base conservadora, estava e está na
defesa do status quo do médico. Sei
que há muitos médicos militantes que discordam do programa e do conteúdo
corporativista da defesa dos conselhos, mas são minoria, infelizmente, porque
se fossem ouvidos, tenho convicção que esse debate pautado na xenofobia e no
racismo seria substituído por um debate centrado na instituição de um sistema
universal de saúde com centralidade no trabalho, em todos os sentidos, do
usuário ao trabalhador da saúde.
Entretanto, as consequências
políticas da chegada dos médicos ao embate ideológico foram interessantes, as
mesmas quando da introdução de cotas sociais e raciais. Vamos relembrar:
dizia-se quando da introdução das cotas sociais e raciais que os estudantes
cotistas possuiriam formação deficitária, e por isso seriam os responsáveis
pela diminuição da qualidade do ensino superior público. Alguma coincidência? Nenhuma, é o mesmo
apreço farisaico pelo fantasma do mérito como instrumento de seleção social, em
que eles fazem parte da elite porque merecem pertencer à elite. É uma
construção ideológica, que no caso das cotas, foi derrubada por pesquisas que
demonstravam o mérito acadêmico dos alunos cotistas igual ou superior ao mérito
acadêmico dos alunos não cotistas.
Nem dá para entrar no mérito
do Revalida, porque se os cubanos não o fazem, os brasileiros também não, o que
invalida o raciocínio pseudológico e medíocre dos conselhos sobre a avaliação
como parâmetro de validação de conhecimento e eficiência, porque simplesmente não
há possibilidade de comparação. Também não dá para entrar no mérito do discurso
do voluntarismo cego que o médico deveria ter. Se um professor não deve tê-lo, não
deve assumir jornada de 65 horas (como propõe o governo estadual paulista) porque
deve defender sua carreira e jornada de trabalho, o médico, enfermeiro ou
qualquer outro trabalhador também não. Aliás, o discurso que parte da esquerda
embarcou é vergonhoso, no mínimo, relacionando o médico a uma disposição de
vida franciscana, a uma figura messiânica.
Contudo, também não dá para aceitar a seco o discurso hipócrita dos
médicos, de que eles não vão para o interior porque não há infraestrutura. Há
muitos postos de saúde bem aparelhados no interior, no norte e nordeste, assim
como há muitos postos improvisados, e os dois tipos de postos estão vazios no
interior, no norte, no nordeste e, inclusive, nas periferias das grandes cidades.
Os médicos não vão porque não querem perder o padrão de vida que uma cidade grande
proporciona, onde normalmente cresceram e viveram, ou não querem andar de carro
por uma ou duas horas para ir à periferia quando podem perder 20 minutos em um
posto mais central. E esse problema não se resume aos médicos. Isso só se
resolveria com um plano de carreira único e geral, pauta que os conselhos de
médicos fugiram.
Fugiram por quê? Porque
trabalham no setor privado, onde ganham mais e sempre ganharão mais, porque se
não ganharem mais o setor privado entrará em falência por falta de médicos.
Simples! Então como se resolve? Decidindo: não há sistema misto em lugar nenhum
do mundo. Ou há países com saúde pública universal (Social-democracia europeia)
que permite residualmente a oferta de saúde privada ou países com saúde privada
(EUA) que oferece residualmente e bem residualmente saúde pública, que é o
caminho que o Brasil parece está trilhando. No primeiro caso há universalidade
com qualidade. No segundo a saúde de qualidade é oferecida aos que podem pagar,
portanto não é universal. O setor público transforma-se em um atendimento pobre
para pobre. O sistema brasileiro está no meio do caminho, pendendo para o setor
privado, que suga recursos públicos do SUS e dá vazão à ideologia construída
desde a década de 1990 da qual o SUS é para quem não pode pagar um plano de
saúde privado, portanto é resto. Se o objetivo é uma saúde universal e de
qualidade, como apregoa a constituição federal, a resolução, portanto, passa
pelo fim da saúde privada ou suplementar, o que está a quilômetros da cabeça de
Dilma, Padilha, conselhos de médicos, elite e classe média, e pela
regulamentação da carreira do médico, impingindo-lhe plano de carreira rígido e
nacional. A bem da verdade, em um país de dimensão continental, professor,
médico e enfermeiro deveriam ter um plano de carreira rígido e nacional, que
possibilitasse cobrir com esses profissionais todos os pontos hoje descobertos.
Se bancário do Banco do Brasil é assim...
O programa, sem querer
querendo, ataca um ponto que estava adormecido na sociedade brasileira: a
reprodução da elite por meio da profissão. A imagem de negras e negros de
jaleco branco ataca o imaginário racista da elite branca. Ataca a ideologia do
médico como profissional bem-sucedido, porque negras e negros não são
bem-sucedidos nas relações brasileiras de poder. Ataca a ideologia do médico
como reserva de mercado da elite branca, como instrumento de dominação política
e ideológica. Alguém viu esse pessoal defendendo a PEC das domésticas com a
mesma vontade que acusa o programa Mais Médicos de trabalho escravo? Alguns que
gritam contra o programa foram até contrários à PEC das domesticas! É realmente cômico ouvir desse zé povinho acusações de que os médicos seriam escravos.
Essas reações indicam que
médicos com cara de empregadas, mendigos, garçons, flanelinhas, jardineiros,
podem ser educativos. Se não, podem pelo menos explicitar de vez o que é a
elite brasileira, racista, preconceituosa e sem princípios. Como diz Maquiavel,
o preconceito tem mais raízes do que os princípios. As declarações estúpidas e
os corredores poloneses dessa elite corroboram a máxima.
L.F.S.