sábado, 27 de julho de 2013

Para onde vão as mulheres negras?


Permita-me confessar que, para música, sou conservador. Aprecio música clássica porque fisicamente é uma música completamente distinta, que pode propiciar algum espaço de contemplação em um mundo repetitivo e descartável. Aprecio Jazz porque concordo com Hobsbawm, para o qual o classicismo da música é alimentado pela vivacidade e sentimentalismo dos músicos negros, a ponto de, quando o escuto, fecho os olhos e começo a balançar involuntariamente, ainda com a vergonha de um desajeitado para a dança. Aprecio muitos sambas porque sinto a sofreguidão de um povo martirizado e a força que essa música alcançou em partes do Brasil, deixando marcas profundas na subjetividade do brasileiro, assim como o Hip Hop, que marcou culturalmente qualquer paulista e paulistano como o samba marcou profundamente os morros cariocas, deixando, assim como samba deixou o malandro carioca, o mano, outra figura social hoje importante e impossível de ser ignorado. Da mesma forma que não é possível ignorar a importância do samba para a constituição do carioca, não é mais possível ignorar a importância do Hip Hop para a constituição do paulista. Se a música apetece ou não as elites ou gosto pessoal, tornou-se algo secundário.
O resto... confesso que sou ignorante por decisão e, por conseguinte, preconceituoso. Odeio o sexismo misógino da bossa nova, em que os homens objetuam as mulheres de forma simplista e despreocupada enquanto as mulheres intérpretes martirizam-se pelo homem fugidio. “Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça” e blá blá blá. Odeio a falta de compromisso, não com a política, porque entendo que arte não necessita possuir vinculação direta, mas com a realidade mais factual do brasileiro, ainda que aprecie muito a estética africana dos sambas-candomblé de Vinicius de Morais. E, confesso, não gosto de funk. Acho-o tão sexista misógino quanto à bossa-nova, sobretudo quanto cantado por homens. Confesso que não acho muita diferença entre chamar uma mulher de coisa linda e cheia de graça e dizer que ela tem que rebolar em seu pinto. Ah, um é mais poético do que outro... Sei, sei. Seria por isso que as Mulheres de Chico sejam tão importantes para as mulheres de classe média?
Entretanto, uma coisa no funk me chamou a atenção desde o início. O papel das cantoras, um papel que as minas não conseguiram construir, infelizmente, no Hip Hop, mundo cão extremamente machista. Algumas cantoras de funk têm um papel diferente das cantoras de todos os outros estilos musicais que odeio. Elas têm desejo. Na bossa-nova, elas têm sofrimento submisso pelo abandono; no funk, elas desejam os homens e os descartam quando o desejo encerra. Óbvio que isso encerra o fetichismo do desejo imediato da sociedade contemporânea, mas, se o homem pode tê-lo, por que não a mulher? Ser mecanicamente contrário a isto seria como, sendo hippie, ser contrário ao programa Bolsa-Família porque ele coloca contingentes populacionais às portas do consumismo.
A minha grande “heroína” nesta emergência política de um ritmo musical que não gosto é Deize Tigrona, desaparecida e vetada do mainstream. Poderia usar aqui a Taty Quebra-Barraco, ou qualquer outra semelhante, mas vou usar a minha “heroína”. Mulher, negra, favelada e ex-empregada doméstica. Tem todo o pacote da dominação sexista e racista da casa grande. Uma mulher boa para cozinhar, segundo corolário popular. Uma mulher da senzala, mas de boca suja para os padrões puritanos do cristianismo brasileiro que vai ao terreiro às sextas-feiras e à missa aos domingos:

Não conseguiu me comer
Agora, quer me esculaxar
Se liga seu otário no papo que eu vou mandar
Então, pára de palhaçada, deixa de gracinha,
Eu dou pra quem eu quiser, que a porra da buceta é
minha.
Então, É minha, é minha, a porra da buceta é minha
Então corre pro banheiro vai tocar uma punheta
Eu dou pra quem eu quiser a porra da buceta 
É minha, é minha, é minha..
É minha, é minha, a porra da buceta é minha
É minha, é minha, é minha..

A porra da buceta é dela. Não há o que questionar porque é óbvio. Está no corpo dela, faz sentido que seja dela. Mas não é tão óbvio. O óbvio aqui é se perguntar por que uma mulher tem necessidade de gritar que o órgão genital que está em seu corpo lhe pertence. Simples, porque, na práxis, não lhe pertence. Pertence às práticas sexistas e racistas que lhe constrangem o direito de escolha e impõem uma norma de socialização da prática sexual, em que o homem assume a dianteira, a coisifica, mesmo chamando-a de linda e cheia de graça, e a descarta em busca da buceta perdida. No caso dela, há uma amalgama de sexismo e racismo, em que ela, mulher negra, não possui outra coisa a fazer diante de um homem do que dar, porque mulher negra seria naturalmente safada e sexualizada, disponível a qualquer homem. Que diga as históricas propagandas da Empresa Brasileira de Turismo, até hoje no imaginário do europeu, e o Sargentelli. No caso dela, negra de pele escura (não mulata), os condicionantes de escolha são mais impositivos e autoritários.

Que playboyzinho, principalmente os mais velhinhos, não tem uma historinha para contar com a empregada? Uma historinha que poderia ser, sem constrangimentos, comparada às histórias de iniciação sexual dos filhos dos senhores de escravos? O fato é que essa imagem tem força social, e ingênuo é aquele que a despreza. Contudo, talvez Deize não tivesse escrito a letra para um playboyzinho, mas para um homem de sua quebrada, o que é provável. A imagem social sexista e racista sobre a mulher negra é tão forte que isso é transpassado também aos homens que não possuem empregadas, que são da quebrada dela e são, inclusive, negros.
Mas continuemos no funk, meio didático. Mas da Deize Tigrona passemos para a emergência midiática atual: Anita, a protagonista do funk mela cueca. Anita é produto da política deliberada de embranquecimento e normalização de práticas do mercado de entretenimento. Essa política, ao contrário do que se pensa, não se restringiu à política varguista no Estado Novo. Pelo contrário, essa política está impregnada no cotidiano e faz parte da indústria do entretenimento e das relações de poder. Diria que é algo estruturante no capitalismo brasileiro, como bem demonstrou Florestan Fernandes e Roger Bastide, em oposição a Gilberto Freyre.
Esse tema é atualmente fruto de trabalhos científicos nos EUA, e muito pouco no Brasil, talvez porque as poucas pesquisas corajosas que se aventuram nessa seara naufraguem em virtude da ideologia da miscigenação ou do institucionalismo do debate étnico-racial. É possível entender a conjuntura política de institucionalização das pautas históricas do movimento negro em políticas públicas, mas é preciso retomar o debate dos condicionantes da subjetividade das questões étnico-raciais e remeter-lhe críticas objetivas.
Há na mídia uma política deliberada de embranquecimento. Entretanto, essa política não nasceu com a mídia. Ela a reproduz, mas a produz também quando a joga na casa de milhões de brasileiros. Ela, ao formular o discurso oficial, oficializa um padrão estético de comportamento social. Valida valores e símbolos e deprecia outros. O mercado de entretinimento valida um padrão de artista, sem dúvida, e não me venha com essa de que quem faz sucesso o faz unicamente por suor. O mercado de entretenimento procura um padrão já criado por ela mesma ao longo de anos, forja esse padrão no escolhido e o coloca no lugar correto, mais ou menos como faz com os sotaques regionais dos repórteres.
Isto fica evidente em todos os ramos do mercado de entretenimento vinculados à mídia, sobretudo propagandas, novelas e música. Mas deixemos a novela e as propagandas de lado porque gostaria de focar na ironia da situação, que consiste na produção do mercado de música. Ocorre que as músicas brasileiras são, basicamente, músicas de matriz africana, ou músicas com forte matriz africana. Samba, pagode, axé, mesmo bossa-nova, chamada corretamente de jazz brasileiro nos EUA – nada tira da minha cabeça que é jazz com samba cantado com preguiça e sem sentimento –, e, agora, funk.
Fiquemos, para não nos alongar em demasia, em três: axé, pagode e funk. Iniciemos por axé.
O axé é o agrupamento das divas baianas. Teve-se a primeira notícia deste estilo no Brasil, de forma massifica, com Daniela Mercury, mas seu auge foi no carnaval racista de Salvador com a polarização de duas divas: Ivete Sangalo e Cláudia Leite.
Sem entrar no mérito da habilidade vocal e artística e das fantasias ridículas das duas, constata-se que ambas são colocadas no topo do cenário musical nacional em detrimento de outras cantoras, como Margareth Menezes. Uma não tem mais talento do que outra. Elas simplesmente foram e são escolhidas, forjadas pelo mercado do entretenimento, pelo que representam. “Ah, elas têm vozes belas”. Não tem, e se tivessem, outras centenas também têm. “Ah, elas fazem boas músicas”. Não fazem, e quem as faz são compositores contratados do mercado que produzem músicas de acordo com os padrões estéticos de rádios e TVs – cadê a guitarra de Armandinho? Não é estranho que duas cantoras brancas simbolizem o carnaval da Bahia em detrimento de cantoras negras? Sim, mas é algo deliberado pelo mercado, uma não possui mais talento do que outra (ainda que quase todos os críticos musicais dê mais bala na agulha a Margareth), mas o fato de serem brancas faz com que fiquem mais expostas no mercado, porque são mais afeitas ao mercado como um todo, incluindo propagandas e estabelecimento de negócios vultosos com programas de televisão.













O caso das divas baianas mostra que o famigerado sucesso é algo cavado, dependente de relações comerciais do mercado do entretenimento. Nesse sentido, o negro é preterido em função de a imagem contradizer a construção histórica do próprio mercado, pautada na imagem do consumidor branco em uma sociedade em que raça é estruturante das relações de classe. Historicamente, os ritmos musicais brasileiros possuem baluartes, sumidades, seres intocáveis, muitos negros e alguns mortos e mudos. Contudo, não fazem parte do circuito do mercado da música que dá dindin.
O caso do pagode é mais simbólico. Ele é dominado por homens negros. Ao contrário do axé, que possui um mercado secundário para mulheres negras, o pagode nega a existência das mulheres negras. Elas não participam de nenhum grupo e, mais, não compõem nem o staff do mercado, o que inclui as pagodeiras oficiais dos grupos. Lógico que compor tal staff é sexismo puro, pois o espaço dado é o sexual. Mas não compor indica que há uma negação totalitária da mulher negra, na qual ela não pertence nem à subjetividade do meio musical.
Isso pode ser averiguado na escolha de parceiras sexuais dos músicos. As escolhas restringem-se a mulheres brancas. Mas por que isto ocorre? Por que homens negros que obtiveram sucesso preferem mulheres brancas?
A resposta é óbvia, mas a fim de não ser chamado tolamente de racista e contrário ao relacionamento inter-racial – é um texto de constatações –, trago uma pérola de Florestan Fernandes e Roger Bastide, quando estes, em meio à ideologia da democracia racial, concluíram o óbvio em uma pesquisa solicitada pela ONU. Concluíram que há racismo (óóó), e o racismo não se resume ao Estado, mas está nas práticas sociais, o que significa que todos somos racistas, independente da raça, sexo e classe. Sabe aquela pesquisa que quase todos respondem que há racismo mas que quase todos dizem que não são racistas? Os autores cristalizam uma realidade racista, em que negros e brancos utilizam-se de muitos artifícios sociais para movimentar-se na sociedade racista e de classe.  Há amor em SP? Lógico, mas o amor não é transcendental por si, ele é condicionado pelas relações sociais. Nunca vi um rico amar à primeira vista um gari! E se existir um caso parecido, faça um favor à intelligentia, trate-o como exceção. A vida real não é novela.
Em Negros e Brancos em São Paulo, os autores afirmam:
          É que a miscigenação segue vias mais complicadas e mais sutis. O casamento entre um branco e uma preta é relativamente raro. Mas faz-se, aproveitando-se das diferenças de nível econômico e das fissuras de grupos, entre um preto e uma mulata escura, entre um mulato escuro e uma mulata ligeiramente mais clara, e assim por diante, até a mulata “passável” que se casa com branco. Acabamos de dizer que três quartos dos pretos interrogados não aprovam o casamento fora da cor, mas é preciso acrescentar que o ideal, para todo rapaz, permanece “uma moça de pele mais clara que a minha”. Até os racistas mais convictos foram de tal forma influenciados pelas concepções estéticas do meio branco que consideram a branca como o seu ideal de beleza e se casam com moças que, pelos seus cabelos lisos, pelo seu nariz afilado, ou o seu tom de pele, se aproximam desse ideal “ariano”.
          Compreende-se melhor por que é o mulato que, na opinião de todos, manifesta o preconceito mais tenaz contra o preto. É que ele não quer recuar, do mesmo modo que, entre os brancos, o operário que chegou a uma boa situação tem mais ambição para os filhos, em matéria de casamento, e é o que mais se opõe a qualquer “decadência” (...) Não há nenhum paradoxo nisso, como o julgam os brasileiros brancos. É a consequência lógica de toda a política nacional, a do embranquecimento progressivo da população e também da ascensão do grupo preto na escala social, o mulato sendo sempre preferido ao preto na obtenção dos empregos (2008, p. 189).
Ao contrário de Freyre, que tinha o relacionamento inter-racial como prova da democracia racial em oposição ao racismo estadunidense, os autores defendem que o relacionamento inter-racial está submetido a regras de mobilidade social em uma sociedade na qual a raça e a classe embrincam-se. A mulher branca ou de pele mais clara significa, para o homem negro, ascensão, cuja objetividade das regras de mobilidade social subjetiva-se nas práticas sociais do amor. Em suma, o casal se ama, mas não é incondicional.
A mulher negra no pagode resume-se a grupos iniciantes e que não fazem sucesso, a grupos que ainda realizam shows nas periferias. Mas, quando um grupo ascende minimamente, os homens que os compõem “escolhem” mulheres brancas ou de pele mais clara, a fim de expressar a mudança social conquistada. A conquista não é plena se os símbolos da ascensão não forem conquistados, o que inclui a parceira sexual. Isto vale também para o futebol e todos os espaços em que o negro possui possibilidade de ascensão social, normalmente no âmbito da cultura e do esporte.
Isto é uma constatação. Acha besteira e racista, observe o Censo de 2010, onde se conclui que as mulheres negras são as que menos se casam e maioria no que o IBGE chama de celibato definitivo, mulheres de 50 anos ou mais que nunca se casaram. Se vivemos em uma democracia racial, onde todos são belos, por que a desproporção?
Outro caso singular e recentíssimo é o que se convenciona chamar de funk ostentação. A ascensão aqui corresponde à ostentação desmedida do capital, carros de luxo, joias, roupas caras, mansões e mulheres brancas.

Voltemos para o funk de cantoras. Observe o caso Anita X Deize Tigrona/Tati Quebra-Barraco. O funk, ritmo musical recente, ainda está repleto de negros, o que é um problema para o mercado do entretenimento. A Anita repete de certa forma o caso das divas baianas, procurando, assim como o mercado fez com os axés mais africanizados, higienizar o funk, pasteurizando-o em uma sensualidade tosca para o público infanto-juvenil. Digo sensualidade tosca porque ela não significa nada com nada, possui apenas o apelo infanto-juvenil da masturbação para o público masculino e da imitação para o público feminino.

Obviamente, Anita embranquece e higieniza o funk e reforça o sexismo de forma tola. Não acha Anita sexista? Faça o seguinte: vista uma roupa parecida, faça a mesma dancinha com a bunda, tire fotos e grave; depois, respectivamente, poste no facebook e no youtube.
Foto: Quer saber como detectar o sexismo? Inverta os generos que protagonizam a campanha publicitária. Se o resultado for sem sentido e tendendo ao ridiculo, normalmente será sexista.

Via: Orbita Diversa
Deize Tigrona não venderia sabão em pó, acredite. Ela foi empregada doméstica e sabe a merda que qualquer sabão em pó faz nas unhas e nas mãos. Anita é uma poderosa, não deve saber nem a diferença entre sabão em pó e sabão em pedra, e exatamente por isso, venderia qualquer sabão em pó ou pasta dental com sorriso fácil e rebolado cheio de malemolência. Ela possui cabelo liso, venderia qualquer xampu. Ela é violão, venderia qualquer calça justa irrespirável. Ela não é favelada, venderia qualquer desodorante e perfume. Ela parece ser alfabetizada, venderia qualquer revista inútil de fofoca.
Esse é o mercado de entretenimento, que se baseia no imaginário racista, sexista e de preconceito de classe construído historicamente no Brasil. O racismo e o sexismo são partes estruturantes do capitalismo brasileiro, e é por isso que é necessário entendê-los.
Contudo, não é restrito ao Brasil. Nos EUA, essa política explicitamente é alvo de críticas há muito tempo. O mercado por lá, ideário hedonista dos liberais de plantão, utiliza-se do embranquecimento real de artistas, a fim de ganhar mercado, muito em função da impossibilidade de negá-los após a conquista dos Direitos Civis. Não falo do Michael Jackson, mas de casos pouco conhecidos no Brasil e razoavelmente estudados por lá, como Beyoncé e Whitney Houston. No Brasil, talvez o embranquecimento real expresse-se mais no alisamento do cabelo.






Há hoje uma grande marcha em curso, que objetiva embranquecer e higienizar todos os espaços. A Copa do Mundo e as Olimpíadas vêm servindo de bom bode expiatório para o embranquecimento e a higienização. Eu e minha esposa fomos à abertura do Maracanã e ficamos impressionados com a quantidade de negros. Na minha seção, éramos os únicos negros, situação semelhante de quando fomos à Ópera, onde pagamos R$ 40,00 em oposição aos R$ 100,00 do Maracanã. O embranquecimento hoje passa pelas desapropriações, pela introdução de regras e preços que impedem o acesso a lugares antes ocupados por negros, como os estádios de futebol, e pela ação militar do Estado (recomendo a leitura do texto de Juca Kfouri no link http://www1.folha.uol.com.br/colunas/jucakfouri/2013/06/1290467-branquearam-o-futebol.shtml).

Nessa marcha do embranquecimento, a mulher negra tende a ser solapada, depreciada e esquecida.

Dia 25 de julho foi dia da mulher negra nos países latino-americanos. É sabido que o brasileiro não se sente latino-americano, assumindo muitas vezes a visão torta do estadunidense passada por Hollywood sobre os povos da América Latina, mas o fato é que o eugenismo da raça e a higienização da cultura negra, objetivando transformá-la em algo comercializável, estão fortes como nunca e caminham de mãos dadas e passos largos. O futuro da mulher negra é nebuloso. Além de necessitarem de práticas políticas baseadas em olhos nos olhos, necessitam que respeitem seus cabelos, brancos [e negros].


L.F.S.



sábado, 20 de julho de 2013

Leblon

Moro no Brasil. Mas, infelizmente, não sou brasileiro. Por acidente nuclear, como o de Chernobil ou Fukushima, nasci em outro país. Este país chama-se Leblon. Para piorar o acidente, sou negro. Se é difícil encontrar negros em cursos de Medicina, imagine negros nascidos no Leblon, na Avenida Visconde de Albuquerque?
Fui extraditado para fora de Leblon, para lugares que não se assemelham em nada com o país paradisíaco formado por areia, cachorrinhos de madames e pequena boemia de velhos. Fui extraditado muito cedo, aos dois ou três anos de idade. Cheguei a Ribeirão Preto em meio às miríadas dos cruzeiros ou cruzados ou cruzados novos do Proálcool. Doce ilusão da Califórnia Brasileira. Descobrimos cedo que os cruzeiros ou cruzados ou cruzados novos pertenciam à pequeníssima parcela da sociedade ribeirãopretana. O grosso vivia de garapão, resto do álcool que fica no asfalto. Descobri um país diferente daquele que nunca tive lembranças, um país sem o chapéu panamá, o chinelinho da informalidade formal e a bebidinha de fim de tarde com alguma Helena.
         Concomitante à descoberta de um país diferente, perdi, como bom extraditado, o contato com a parcela de minha família que ficou em Rio de Janeiro, lugar unidimensional pertencente ao Brasil que faz fronteira com Leblon. Rio de Janeiro sofre do mesmo problema de Bolívia: não faz fronteira com o mar, perdeu-a na Guerra do Pacífico. Talvez se ressinta como um bom nacionalista boliviano ressinta-se do Chile ou um bom nacionalista paraguaio com a Tríplice Aliança.
Por outro cataclismo, redescobri recentemente parte da minha família. Reencontramo-nos neste ano, cujo encontro ocorreu no final de uma viagem longa de férias de janeiro, as quais já estavam, por incrível coincidência, agendadas e pagas. Iniciamos, minha companheira e eu, nossa viagem em São Paulo, cidade que gosto muito, fomos para Parati, e terminamos em Rio de Janeiro.
Quando chegamos a Rio de Janeiro, fomos recepcionados por parte da minha família e levados para Ipanema, onde ficamos. Uma placa na frente da pousada dizia que aquela residência havia pertencido a Tom Jobim. Não ficamos em Rio de Janeiro.
Deixamos nossas malas e fomos ver parte da minha família fluminense. Iniciamos uma pequena viagem. Passamos por um morro onde, segundo meu pai, originara-se minha família. O morro, antes denominado morro da Catacumba, virou um parque, hoje chamado parque da Catacumba. As pessoas que ali moraram haviam sido despejadas.
Senti um vazio imenso, daquele que não proporciona nenhuma perspectiva e caminho para rumar, um vazio que não lhe dá direção e sentido às coisas, uma escuridão perpétua na qual você não tem para onde ir e resolve, mecanicamente, andar sem rumo, até encontrar um terrão batido onde possa recostar-se sem possibilidade de descanso. É o que senti o que mais ou menos deve acontecer com um sujeito depois de um despejo. A impossibilidade de retomar os caminhos que você sempre caminhou, o caminho para casa, o caminho ao trabalho, o caminho ao vizinho... É verdade que me coloquei no lugar daqueles que nunca conheci porque imaginei algum grau distante de parentesco, mas o fato é que me coloquei, sem saber como até hoje fui parar na Visconde de Albuquerque em um respeitável apartamento leblonense. Meu pai parou lá primeiro, casou com minha mãe e eu nasci lá. Mas o restante das pessoas expulsas foi parar em Penha e Cidade de Deus.
O governador Negrão de Lima fez uma limpa naquela época, limpou o Morro da Catacumba e a favela da Praia do Pinto, ambos no Leblon. A favela da Praia do Pinto, contudo, assumiu contornos terroristas. Ao contrário do Morro da Catacumba, que pelo menos existia o argumento de impossibilidade de urbanização – o que, a meu ver, não justifica a expulsão dos moradores, porque, a priori, nenhum morro possui plenas condições de urbanização, sobretudo naquela época –, a favela da Praia do Pinto era uma favela-bairro, alvo de tentativas de desapropriação desde a década de 1950. Contudo, os moradores foram expulsos somente em 1969 através de um incêndio criminoso que acabou com todas as casas – alguma coincidência com São Paulo sob gestão Kassab?

E assim, com fogo e sangue, nasceu um país, um símbolo de prosperidade humana, uma terra dourada como o Eldorado de Cortez, Leblon. O sangue foi expulso pelo fogo, e formou uma sociedade linda e limpa.
Bem, mas gostaria de voltar à viagem depois do morro... parque da Catacumba. No carro de minha prima, pela primeira vez de todas as vezes que visitei Rio de Janeiro, sai da Zona Sul. Para onde fui? Fui para a Zona Norte. Sim, sai da Zona Sul. Cheguei, depois de um bom tempo, a Vicente de Carvalho. Ali conheci o restante da minha família. Voltamos lá mais vezes, inclusive em outra viagem. Viciei em ir para a Zona Norte, pegar o metrô, conversar com as pessoas sem ser vendedor, policial e taxista. Fui chegando à conclusão que no fundo sai da Zona Sul e adentrei em Rio de Janeiro.
Sempre cresci com o slogan de cidade maravilhosa na cabeça. Falava-se de Rio de Janeiro, e vinha à cabeça a tal da cidade maravilhosa. Comecei a perceber que a cidade maravilhosa também é horrorosa, e não é porque a Zona Norte é feia, como o leblonense pensa. É porque percebi que a cidade é pensada a partir da Zona Sul, dentro de um projeto ultraconservador de cidade. Existe a Zona Sul e existe o resto. Sei que pode parecer uma obviedade para quem sempre morou em Rio de Janeiro, mas eu cresci em Ribeirão Preto, vou muito a São Paulo, e acabei aprendendo a pensar a cidade a partir do centro, mais ou menos como coração e artérias. Pensar o contrário é um absurdo para mim. Obviamente isto não exclui a mesma relação entre centro e periferia, mas até então tinha a ideia única de bairros e morros.
Percebi isto vendo o metrô, ridiculamente composta por uma linha (uma linha ao lado da outra é ridícula, me desculpe, e por isso que é uma linha só mesmo tendo duas). Ele é pensado em levar o cliente da zona sul ao centro e encaixotar o passageiro do centro a zona norte. A diferença de qualidade de estações e a gambiarra de trilhos – de trem – na zona norte assustam, não por risco iminente de acidentes, mas por descaramento de distinção de tratamento.
Percebi também que as pessoas, de modo geral, não amam Rio de Janeiro. Sabe aquele outro slogan, que todos amam a cidade maravilhosa. Mentira deslavada. As pessoas que moram em Rio de Janeiro amam a cidade como o paulistano ama a cidade de São Paulo, por falta de opções. Uma coisa é trabalhar no centro ou na zona sul em algum escritório, pegar o carro ou algum táxi, ir para casa, pegar uma prancha de surf e curtir um finalzinho de tarde e pôr do sol ao cheiro de maconha e regado à cervejinha gelada. Coisa diferente (e desigual) é sair de alguma obra da zona oeste, pegar ônibus por duas horas, descer em algum ponto improvisado no meio da rua, disputar uma vaga em uma van, pegá-la na segunda tentativa, desembarcar e caminhar por vinte minutos até a sua casa. Esse cara ama Rio de Janeiro por falta de opção ou por propaganda, mais ou menos quando se tem aquelas competições ridículas de músicas que mais expressam a cidade, como Sampa e Cidade Maravilhosa, se bem que Sampa é bem diferente do ufanismo medíocre de Cidade Maravilhosa.
Os olhares dos fluminenses são tão mecânicos, cansados e distantes quanto os olhares dos paulistanos encaixotados em trens, ônibus e metrôs. A propaganda da Cidade Maravilhosa fez algo terrível para o fluminense. Transformou a ideia de Rio de Janeiro, um lugar ensolarado, lindo e perfeito, em um lugar-comum que não pertence ao verdadeiro Rio de Janeiro, transformou Rio de Janeiro em outro país, tipo um Leblon, ignorando a realidade e suas contradições. Portanto, a ideia de Rio de Janeiro é o Leblon, mas Leblon não pertence a Rio de Janeiro. Estão apartados desde que Leblon nasceu e indiretamente promoveu, com a expulsão dos moradores mediante ação estatal, a construção de parte da Zona Norte e algumas dos maiores complexos de favelas do Rio de Janeiro. Leblon expulsou Rio de Janeiro, ou expulsou o que havia de Rio de Janeiro nele.
Um dia meu pai e eu visitamos o lugar onde nasci. Começamos a caminhar pelo bairro e uma coisa me chamou a atenção. A quantidade de militares nos nomes das ruas. Quase todas as ruas tinham nomes de coronéis, almirantes e brigadeiros. Juro que pensei que a Rua Baden Powel fosse homenagem ao músico. Percebi que era um lugar distinto, em todos os sentidos, e comecei a pensar na armadura política e repressiva que o bairro deve ter criado na ditadura militar. O excesso de militares por metro quadrado talvez explique a forma com a qual se deu a expulsão dos moradores das favelas. A armadura autoritária criada ao longo da história do Leblon talvez ajude a entender a grita contra o que a mídia leblonense chama de vandalismo e baderna nas últimas manifestações, e ajude a explicar o temor enorme que sente no momento, talvez comparável aos carros queimados após o escândalo do processamento de dados na eleição de Brizola. O fluminense não ama a cidade como o leblonense a ama, porque este a tem na cabeça nos limites da Epitácio Pessoa. O fluminense sofre com a cidade, em muitos momentos, a odeia. Isto é admissível sim, pois o fluminense hoje tem em sua cabeça a cidade real, um país esquecido pela cidade maravilhosa. Hoje o fluminense sabe que Rio de Janeiro não é Leblon e que Leblon não é Rio de Janeiro. Não acredita nos slogans simplistas. Entende e distingue as reações desproporcionais da cúpula de segurança e do governador entre o vandalismo assassino da polícia no Complexo da Maré e o vandalismo de vidros quebrados de bancos e lojas no Leblon. Alguém viu alguma reunião de emergência entre governador e cúpula de segurança após a chacina da Maré? Alguma entrevista coletiva? Sejamos mais simplistas ainda e comparemos vidro com vidro já que para alguns o vidro do Leblon é mais importante do que a vida de um favelado: alguém viu o desespero atual do governo, polícia, ministério público e mídia com as depredações do centro do Rio de Janeiro?
Pode parecer absurdo, mas o fluminense talvez odeie Rio de Janeiro e, de quebra, odeie o Leblon. Talvez o que ocorreu seja sintoma de algo novo que não sei se repetirá em breve. Talvez seja Rio de Janeiro querendo retomar o Leblon e ter acesso ao mar. Se isto ocorresse, Rio de Janeiro transformar-se-ia em uma única cidade, com sol, suor e sangue. Que o mesmo fogo que expulsou os moradores da favela da Praia do Pinto arda hoje no Leblon.


L. F. S. 

segunda-feira, 15 de julho de 2013

A mídia em três atos


O que talvez tenha ficado provado para aqueles que participaram das manifestações é o papel que a mídia tem na formulação do discurso oficial, a despeito do que se comumente pensa. O discurso oficial não deve ser entendido como o discurso do governo, como o senso comum acredita e a mídia promove, mas sim uma síntese de interesses particulares e divergentes daqueles que possuem os mecanismos sociais de formulação do discurso, os quais possibilitam transmiti-lo como verdade única.
Assim, o discurso oficial contempla divergências pontuais, mas abriga, sem dirimir contradições entre as frações de interesse, um discurso interessado que contempla a todos que compõem o poder político-econômico. Após ser transmitido pelos meios socialmente construídos e legitimados como espaços de divulgação, o discurso interpretativo e interessado dos fatos transforma-se em discurso isento. Nesse sentido pode ser entendida a atuação dos meios de comunicação na cobertura das manifestações, sobretudo a do Movimento Passe-Livre (MPL).
Podemos dividir a cobertura da grande mídia em antes das manifestações legitimadas pelos meios de comunicação, durante as manifestações e depois das manifestações, pois nesses momentos encontram-se discursos diferentes que foram se metamorfoseando conforme o desenrolar dos fatos.
O primeiro ato foi o que podemos denominar de demonização do movimento. Quando as manifestações iniciaram-se em meados de 2013 – lembrando que foram registradas mobilizações já em 2012, o que ajudou para que o aumento fosse adiado para o meio do ano de 2013 no estado de São Paulo, pelo menos –, a mídia construiu um discurso afinado com os interesses dos empresários do transporte e com os dirigentes políticos. Podemos constatar essa visão nos editoriais da Folha de São Paulo e Estadão antes da fatídica quinta-feira. Vamos ver alguns pontos do editorial de 13 de junho de 2013, intitulado Retomar a Paulista.
   No início deparamo-nos com o que o grupo Folha considera o saldo da manifestação anterior do MPL na Paulista: “Oito policiais militares e um número desconhecido de manifestantes feridos, 87 ônibus danificados, R$ 100 mil de prejuízos em estações de metrô e milhões de paulistanos reféns do trânsito. Eis o saldo do terceiro protesto do Movimento Passe Livre (MPL), que se vangloria de parar São Paulo – e chega perto demais de consegui-lo”.
  Claramente o tom é pejorativo, objetivando minorar junto à opinião pública a manifestação e o MPL. Em seguida, o jornal passa a atacar a pauta do MPL, o passe-livre, vinculando-a – o que é um ato cognitivamente imbecil – com a suposta violência dos manifestantes. Diz que a pauta de redução não passa, isto mesmo, não passa de pretexto para os manifestantes serem violentos, buscando apoio entre a massa de desorientados e ingênuos que estão abarrotados em ônibus e trens. Leia atentamente a pérola:

“Sua reivindicação de reverter o aumento da tarifa de ônibus e metrô de R$ 3 para R$ 3,20 – abaixo da inflação, é útil assinalar – não passa de pretexto, e dos mais vis. São jovens predispostos à violência por uma ideologia pseudorrevolucionária, que buscam tirar proveito da compreensível irritação geral com o preço pago para viajar em ônibus e trens superlotados”.

A vinculação é infantil e pressupõe ou tem como meta a infantilização do leitor. Eis o argumento infantil: os manifestantes são naturalmente violentos em nome de uma ideologia ultrapassada e aproveitam-se da revolta dos passageiros para propor o que é inviável. Perceba que, como entinema ou implícito, há o argumento de que os jovens pseudorrevolucionários são de classe média, pois se fosse diferente não se aproveitariam dos usuários, já que seriam usuários. Arnaldo Jabor que o diga. (Acesse o link se você, incrivelmente,  ainda não viu. http://www.youtube.com/watch?v=Su4R8U5OWj0 ). Interessante aqui que, sem explicitar dessa forma (cuidado de editor), imbeciliza o seu público.
Em seguida, ataca a pauta do MPL, taxando-a de “irrealismo” de um “grupelho”. O irrealismo, na visão do grupo econômico midiático, justificaria o ataque a símbolos anticapitalista. Até aqui o editorial criou algumas premissas, as quais servirão de fundamento para um pedido especial, para o qual o texto foi construído: pedir à polícia que resolva.
No parágrafo seguinte, o editorial justifica a ação da polícia, uma vez que a existência de manifestantes encapuzados causam uma reação proporcional do aparato militar: “Os poucos manifestantes que parecem ter algo na cabeça além de capuzes justificam a violência como reação à suposta brutalidade da polícia”. O editorial, contudo, vai além da relação mecânica entre ação – dos manifestantes/vândalos – e reação – Polícia Militar –, afirmando que o convívio democrático pressupõe a imposição de regras e leis básicas, como o direito de ir e vir – ah, o mesmo argumento de sempre, que o pessoal do carro tem direito de andar de carro.
Posto isto, vem o pedido especial: “É hora de pôr um ponto final nisso. Prefeitura e Polícia Militar precisam fazer valer as restrições já existentes para protestos na Avenida Paulista, em cujas imediações estão sete grandes hospitais”. O editorial do grupelho pede candidamente que a Polícia Militar ponha “ponto final nisso”. O grupelho exigiu que o Estado agisse para acabar com as manifestações, com o argumento espúrio – porque é o de sempre de quem é sempre contrário a manifestações – de que a Avenida Paulista é a artéria da cidade com hospitais ao seu redor.
Para terminar, o grupelho faz a seguinte afirmação: “No que toca ao vandalismo, só há um meio de combatê-lo: a força da lei”. Aqui ela faz uma relação que depois será constantemente utilizada pelos meios de comunicação, que é a utilização do termo vandalismo para justificar a ação da polícia, que viraria, depois da (re)ação destemperada da polícia, princípio de distinção entre o bom manifestante (indivíduo vestido de branco ou com bandeira do Brasil gritando contra a corrupção, que se senta para dedurar os supostos vândalos) e o manifestante ruim (sujeito vestido de vermelho ou com máscara ou capuz que gritava pautas mais específicas, como a tarifa zero). A reação da mídia, sobretudo das organizações Globo, à ação da policia no Rio de Janeiro demonstrou como ela é leniente com a ação policial, como ficou evidenciada na ação policial no centro e no Leblon e o ocorrido no Complexo da Maré, onde as balas não eram de borracha, bordão que ficou conhecido nas redes sociais e em algumas manifestações, o qual não pode ser esquecido jamais, pois exemplifica o que é a polícia e a reação discriminatória que a classe média tem sobre uma realidade supostamente discricionária, na qual para ela tudo tem sentido moralizante.
Esta foi a construção do discurso oficial, síntese entre os interesses dos empresários do transporte (doadores de campanha), políticos e mídia. Os editoriais dos dias que antecederam a ação da Polícia Militar na Paulista objetivaram promover e legitimar a ação policial. Esse expediente é comum na mídia paulistana. Quem não se lembra da desocupação de Pinheirinho, precedida por editorais e reportagens que induziam a criminalização dos ocupantes e dos militantes – atente-se para a similaridade entre militantes “pseudorrevolucionários” e população ingênua nos ônibus e trens, e militantes irresponsáveis do PSTU e moradores ingênuos do Pinheirinho –, e do editorial após a desocupação, intitulado Operação Pinheirinho; ou dos editorais e reportagens sobre a Cracolância em São Paulo e a justificação da ação militar para tratar viciados. O fato é que, historicamente, a ação da mídia paulistana funciona como fomentadora e legitimadora à ação militar em questões sociais. Então, se houve violência “desmedida” da polícia na manifestação seguinte do MPL, atacando sete jornalistas do grupelho folha, é porque o grupelho folha pediu. Se a ação saiu do controle, é outra questão que não estava na contabilidade do grupelho e do Arnaldo Jabor, a verdadeira piada de argentino (Acesse http://www.youtube.com/watch?v=rkQgyxoRU9k ).
O editorial de 15 de junho, intitulado Agente do Caos, já responsabiliza a Policia Militar pela violência, descrevendo repórteres feridos atingidos por balas de borracha, gás de pimenta, gás lacrimogênio e cassetete. Mas há uma coisa que talvez tenha ficada desapercebida. A questão central do editorial não foi a violência policial em si, mas a violência policial contra os jornalistas, como fica claro neste patético trecho: “Há uma razão adicional para a força policial não tomar jornalistas por alvo: o trabalho da imprensa oferece um testemunho expurgado do radicalismo sectário que se impregnou nas manifestações contra o aumento das tarifas”.
Em outras palavras, a análise do editorial anterior não foi suprimida, apenas subestimada diante da veemência da ação policial contra os jornalistas. Ainda o grupelho continuou a abordar uma certa loucura dos manifestantes, um certo “radicalismo sectário” (jornalista deveria saber que etimologicamente radical e sectário são coisas bem distintas) que impossibilita a negociação com quem não é “radical sectário”, como o prefeito e o governador, pessoas sãs que sabem que a tarifa zero é devaneio vil de “pseudorrevolucionários”.
Depois da quinta-feira sangrenta para a classe média, restou a mídia disputar o movimento. As ações anteriores destinaram-se a negar o movimento como um todo, mas agora, em virtude da repercussão da ação militar, o movimento ganhara força. As críticas iniciais não poderiam ser mais usadas como antes. Agora, a mídia tinha que disputar o movimento, como partido político organizado nas ruas. Esse foi um dos momentos mais didáticos de como a mídia organiza-se tomando partido, de forma organizada, a fim de ganhar mentes e corações. Entrou em cena a mídia televisiva. A mídia televisiva passou a focar as pautas que lhe interessavam através da forma mais cabal e indiscutível dos tempos atuais: a imagem. Diz ela que uma imagem vale mais do que mil palavras, e ela fez valer esta sentença.
Quem já participou de manifestação sabe que, ao registrar uma parte da manifestação, você está registrando uma parte das reivindicações, pois mesmo que a reivindicação seja única, há ainda grupos dentro da manifestação que a focam de forma distinta – exatamente por isto a primeira faixa, a que em tese será gravada, é muito importante e costuma ser uma chamada que unifica a todos que participam. Imagine quando a classe média é convidada a sair de seu apartamento. Vestida de branco, preto e verde-amarelo, ela serviu de ótimo modelo de manifestante: nacionalista, antipartidário, antigoverno, empreendedor e anticorrupção – que não quer dizer nada com nada (solicito ao leitor que leia o texto que fiz Tempos sinceros: dramalhão mexicano da classe média ribeirãopretana, em que descrevo como a classe média ribeirãopretana fugiu das manifestações com a focalização da pauta e a explicitação da corrupção municipal, cuja fonte ela bebe).
O manifestante Policarpo Quaresma passou a ser o modelo de bom manifestante. O manifestante pautado, com reivindicações precisas, passou a ser tratado como manifestante ruim, vinculado à baderna e ao vandalismo, dois termos que passaram a ser martelados em qualquer noticiário, o qual se apressava em classificar a manifestação de pacífica e, quando ocorria algum confronto, apressava-se em “descrever” que um grupo pequeno de não manifestantes, de saqueadores, baderneiros e vândalos confrontou a polícia sem motivação aparente. Esses termos foram tão martelados que até mesmo prefeitos e governadores que deveriam tratar das pautas tratassem apenas de saudar os bons manifestantes, bons para a democracia, e recriminar os manifestantes ruins quando emitiam notas oficiais. Mas e a pauta, os dirigentes não a tratavam nas notas e nas poucas entrevistas? Não! Não era necessário, o manifestante bom não queria saber disto, as empresas e os dirigentes políticos também não, e a mídia muito menos.
Esta é o segundo ato do movimento, a disputa. A mídia disputou abertamente como partido político organizado. A disputa também passou pela transformação das pautas específicas em pautas genéricas federais, o que, de certa forma, procurou matar dois coelhos com uma bala de borracha. O primeiro consiste nos interesses corporativos da mídia – e o nacionalismo teve grande papel nisto. Há um bom tempo ela procurava formas de diminuir a aprovação ao governo federal nas pesquisas. Ela, há tempos, vem demonstrando que necessita de um candidato à altura para aumentar sua capacidade de negociação – como parece ficar mais ou menos claro com a denúncia descoberta da sonegação fiscal da Globo. Veja, não estou falando da Dilma não vencer porque eles querem a todo custo outro candidato; estou falando da candidata necessitar bater à porta dos meios de comunicação, o que bem é diferente.  Se será ela ou não tanto faz, o que importa é o poder de barganha, seja de pautas, como a não regulamentação da mídia, seja de favores, como o esquecimento e o segredo militar de problemas com o fisco. E convenhamos, Aécio Neves e Eduardo Campos não decolam nem com Apollo. Só decolarão com influência externa, ou ajudinha amiga.
Segundo, ao transformar pautas municipais, estaduais e federal em pautas exclusivamente pertencentes à esfera federal resultará, com o tempo, no fim das manifestações e na retomada do controle sobre a opinião. Ao pulverizar as manifestações com a transformação das pautas em pautas exclusivas à esfera federal, as soluções que poderiam ser alcançadas por movimentos organizados – e nisto o antipartidiarismo é fundamental – naufragam, uma vez que algumas soluções só podem ser conquistadas com certa municipalização e estadualização das pautas, sem esquecer, obviamente, a importância da União e do Congresso Nacional.
O segundo ato tem a marca da despolitização. Mas houve contradições, como qualquer movimento. Foi impressionante ver a ojeriza de muitos manifestantes, e não somente dos organizados, com os meios de comunicação. A necessidade dos repórteres da Globo de cobrir as manifestações em helicópteros e sacadas de prédios e de utilizar repórteres jovens meio barbudinhos sem identificação, alegando que estavam ali para fazer documentários, foi a consequência impactante para os meios de comunicação da repulsa sobre suas práticas ao longo das décadas. Mas a disputa que a mídia encampou demonstra que as redes sociais não substituíram os meios de comunicação na formulação da opinião.
Por fim vem o terceiro ato, que é o de achincalhamento. O discurso oficial agora visa poupar lideranças regionais, onde a mídia estabelece negócios vultosos (veja o quanto as empresas de comunicação lucram com contratos com municípios e estados, sobretudo São Paulo e Rio de Janeiro, ou relações duvidosas, como a da Família Huck com a Famílias Cabral e Barata), e achincalhar representantes da esfera federal, tocando em uma suposta falta de compreensão destes sobre as reais necessidades dos manifestantes. Ai vem a tentativa de síntese e de reconquistar o terreno perdido no primeiro e segundo atos. Para fazer essa afirmação, significa que quem a faz sabe as reais necessidades dos manifestantes, caso contrário não poderia fazê-la. Você somente sabe o que o outro não sabe se você sabe – quase uma Aporia de Menon, não?
Vem agora uma tentativa desavergonhada de colocar na vala do esquecimento o processo no qual a mídia trilhou, a saber, a de criminalizar os movimentos sociais e partidos políticos, tratá-los a partir da antinomia realidade-sanidade/irrealidade-loucura, ao mesmo tempo em que foi alvo de protestos por todo o Brasil e expulsa de manifestações por manifestantes não organizados. Objetiva-se inculcar um discurso que possibilite a negociação maior como a esfera federal e que a recoloque como portadora da verdade.
Para exemplificar esse processo, descrevo um pseudodebate que vi, mas que, por ser tão caricatural, demonstra didaticamente as nuanças do discurso oficial e o seu real objetivo. Vi o programa do Jô Soares, um pseudointelectual. Nesse programa havia um quadro chamado Meninas do Jô. Esse quadro era composto por quatro jornalistas mulheres do circuito mainstream. Em todo o debate, a única coisa que ouvi foi a afirmação de que os governos, sobretudo o federal, não entenderam as reclamações da população (sim, deixaram de ser necessidades e viraram reclamações. Consumista não?!), e o plebiscito foi um dos sintomas desse desentendimento – interessante que pesquisas demonstravam que a população era ou é amplamente favorável ao plebiscito, enquanto claramente os meios de comunicação e o congresso eram e são contrários.
Em determinado momento do acaloradíssimo debate com as “meninas”, o apresentador puxassaco da carcomida e inútil ABL emitiu a seguinte estupidez:

- Alguém pode me explicar o slogan do governo federal, País rico é país sem miséria? Não brinca, pensei que não soubesse (risos).

Aqui ocorre o que os especialistas em meios de comunicação chamam de idiotização ou infantilização da informação, na qual ela á transmitida de forma tão natural e estúpida que parece lógica e óbvia para todos. Talvez esse senhor não saiba porque atualmente não tenha oportunidade de ver o óbvio para além do vidro fume do seu carro, ou sua visão não alcance nada além do muro do condomínio que o cerca. Primeiro, existe uma frase muito famosa que talvez tenha esquecido, o que é um absurdo sobretudo para quem se vangloria nas suas contações de história de ter “escondido e ajudado” comunistas na ditadura: “É preciso primeiro fazer o bolo crescer para depois dividi-lo”, frase do aluno USP padrão Delfim Neto. O que há implícito nessa frase aparentemente lógica, como a sentença estúpida proferida no falso debate? Que, antes de pensar em divisão, é preciso esperar crescer, senão não crescerá. Óbvio, qualquer criança entende isto. Portanto, é possível existir riqueza ao lado de pobreza, porque PIB é uma coisa e distribuição de renda e riqueza é outra coisa, nesta visão.
Na época dessa frase milagrosa Roberto Campos borboletava nos palácios e nos holofotes da Globo com sua metáfora cristã do Estado Jardineiro, cujo sentido é o mesmo dado por Froebel para Jardim de Infância. O que restava então à população, à classe trabalhadora, era simplesmente ficar a contemplar o bolo crescer através do vidro fumê do forno, como um cachorro. Lembremos que essa frase fora forjada para justificar o arrocho salarial e a tendência histórica de perda real de salário verificada nas décadas de 1970, 1980 e 1990, assim como o poder de compra de insumos básicos do trabalhador, o que ajuda a explicar, inclusive, o love que parte da sociedade tem com o Lula, reconhecendo-o como o timoneiro que reconduziu a carne vermelha em seus pratos e expurgou o frango e o ovo. Difícil entender?
Segundo, mesmo com a falência conceitual deste tipo de pensamento, ele ainda fundamenta boa parte do pensamento econômico hegemônico, no qual a riqueza de um país é medida exclusivamente pelo PIB. Esse pensamento baliza qualquer formulação de negócio neste mundo de capital mundializado. Já viu alguma empresa petrolífera exigir IDH alto à Nigéria para obter autorização para extrair petróleo de sua costa? Já viu a FIFA debater escolarização para escolher países-sedes, ou se o país-sede é uma democracia representativa? Observe as últimas escolhas, África do Sul, Brasil, Rússia e Catar. Já viu os EUA debaterem a introdução de eleições livres na Arábia Saudita? Não, é business, o que importa é o dinheiro, não interessa muito como se o prospecta, se através de invasões e expulsões de casa – chamadas sutilmente de remoções para projetos de mobilidade urbana por essas bandas –, ou de assassinatos, ou simplesmente mediante disposições ataráxicas sobre o que ocorre para além do vidro fumê.
Terceiro, o slogan indica que o governo, pelo menos em discurso, discorda de sua utilização política na história brasileira e do pensamento econômico falido que fundamenta a práxis de governos e empresas, inclusive a que esse senhor trabalha. Significa que o governo possui um discurso que se propõe a não deixar o bolo crescer e que discorda das premissas que fundamentam a atuação de empresas e governos ao redor do planeta. Significa que, pelo menos no discurso, opõe-se à baba do cachorro diante do forno. Então, como intelectual autointitulado baba ovo da ABL, poderia ter abordado a contradição cínica do governo de não modificar a política econômica de superávit primário e de pagamento de juros de títulos da dívida pública, que por sinal privilegia ricos como ele; a não taxação das grandes fortunas, que por sinal privilegia ricos como ele; a não realização de auditoria da dívida, que por sinal privilegia ricos como ele; e a falta de cobrança de fisco de grandes empresas, como a empresa que este senhor deve ao fisco (por que não faz uma piada?). Poderia inclusive argumentar que não há possibilidade de acabar com a pobreza se não houver uma política de Estado radical – sim, radical – para saneamento básico, exemplificando com a recusa recente do governo federal de aceitar a visita de observadores da ONU para avaliar a política nacional de saneamento básico, impedindo-os de entrar no país. Aí, quem sabe, poderia transformar-se em intelectual decente, que se propõe a debater todas as coisas em suas raízes, com radicalismo (sim, radicalismo consiste em ir à raiz dos problemas, não às folhas), deixando de lado as filigranas linguísticas e explicitando a contradição entre o discurso por trás do slogan – se bem que nem o slogan conseguiu entender, pois o contrário significaria que possui má-fé – e a prática do governo.
O discurso proferido, portanto, faz parte do discurso ideológico forjado hoje pela mídia sobre os protestos, pois objetiva disputar uma interpretação sobre o movimento, excetuando as críticas do movimento a ela, (re)conduzindo-a em produtora isenta de interpretação sobre a realidade. Talvez a criminalização tímida com o 11 de julho tenha sido um ponto de inflexão importante no discurso. Esse processo, neste caso, dá-se pelo idiotismo e infantilismo. A idiotização é uma das formas manifestas dos meios de comunicação de “adaptar” a população a uma posição escancaradamente conservadora. Esta é a fase na qual estamos. Só se lhe confronta com a explicitação de seus condicionantes e a formação de discursos contra-hegemônicos e alternativos que fazem a disputa política contra esses verdadeiros partidos. Para isso, qualquer apreciação que se paute em ideias como isenção e ausência de regulamentação dos meios de comunicação mostra-se ingênua, mais ou menos como o grupo Folha e os meios de comunicação pressupõem a população encaixotada nos ônibus, trens e metrô que não conseguem cotidianamente exercer o seu direito de ir e vir.



L. F. S.

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Tempos sinceros: dramalhão mexicano da classe média ribeirãopretana



Li recentemente um post hiperfabricado postado por três amigos no facebook: "Não quero plebiscito. Quero saúde, transporte e educação". Acontece que quem faz essa relação ou está em estado de completa ignorância política, e por isso reproduz qualquer discurso, sobretudo os mais conservadores e reacionários, até porque se aproximam mais do senso comum, ou realmente é reacionário e conservador, caso daqueles que o fabricaram. Para a grande maioria, fico com a primeira opção. 

Vincular abstratamente saúde, transporte e educação com o plebiscito é algo tão ridículo e estúpido quanto vincular o movimento de rotação dos planetas com o movimento do pião de um menino. Saúde, transporte e educação são serviços executados pelo Poder Público MUNICIPAL, prioritariamente, e ESTADUAL. A União executa muito pouco em saúde e educação, o que não a exime de responsabilidade, mas obriga a quem critica a, pelo menos, instituir mediações para o exercício da crítica.

Ocorreram nas últimas semanas mobilizações em todo o Brasil, primeiramente motivadas pelo custo do transporte, e depois, segundo meios de comunicação, "difundidas" para outros “setores ou áreas”, como educação, saúde e corrupção. Em Ribeirão Preto, ocorreu uma grande manifestação que reuniu, segundo Policia Militar, 30 mil pessoas. Vi coisas completamente absurdas na manifestação, mas contemporizadas por mim por entender que era a primeira manifestação de muitos, senão a maioria (afinal, sempre participei de atividades e manifestações na cidade, e presentes sempre gatos pingados contados nos dedos das duas mãos, quando não de uma). Mas o que me chamou a atenção foi, sem dúvida, as pautas levadas, aquelas enfiadas pela grande mídia, como corrupção e PEC 37. Sou servidor público, e vi muitos servidores comissionados e concursados e pessoas que, digamos, não usam transporte público, aliás, não usam nada público, empunhando cartazes sobre o governo federal, congresso e, esporadicamente (e bota esporadicamente nisto), governo estadual. Vi também em suas mãos cartazes contra a PEC 37, contra a corrupção, por mais saúde e educação, e todas aquelas fraseologias patéticas oriundas de propagandas midiáticas disfarçadas de telejornal.

Depois de uma grande autocrítica dos movimentos organizadores do ato, depois da morte de um jovem que usava transporte público e que fora a um local que não deveria ter ido, levado irresponsavelmente até lá, o movimento tornou-se, in facto, em movimento organizado sobre transporte, focando-se no transporte público municipal através de pautas tais quais a volta ao preço da tarifa antes do aumento, a publicização da planilha de custos e investimentos das empresas e o passe-livre, coisas que estavam acordadas mas que se perderam nos 30.000. Essa manifestação, mais focada, levou 8.000 pessoas na Câmara dos Vereadores, promoveu um acampamento em seu final na frente da prefeitura que permitiu a reorganização e rearticulação dos movimentos sociais dispersos e incomodou políticos e empresas. Entretanto, o salto organizativo foi diretamente proporcional à saída dos manifestantes evasivos da PEC 37.

Vi pessoas reclamarem em rede social que o passe-livre não levava temas importantes, como corrupção, e que, por isso, sentiam-se traídas. Então, no fundo de minhas retinas tão fatigadas, se descortinou uma grande contradição. Tínhamos definitivamente a oportunidade de debater e exigir pautas, tínhamos objeto, objetivo, justificativa, procedimento, método e queríamos uma conclusão, como se fora projeto de pesquisa. Ficou evidenciada, didaticamente, a relação promíscua entre Poder Público e empresas, cujo caldeirão ainda tinha como tempero comissionados, servidores de carreira, empresas subsidiárias e vereadores. O senhor Latuf, representante da Transerp, empresa supostamente pública que deveria regular e fiscalizar as empresas permissionárias, transformou-se aos olhos de todos em grande dirigente do Consórcio PróUrbano, deixando evidenciado que, neste caso, não há distinção entre Poder Público e setor privado, porque simplesmente o Poder Público foi privatizado há muito tempo. Simples assim!

Aí que vem a contradição. O nome disto é CORRUPÇÃO. Está ali, todos sabem onde, todos viram como funciona, como se desenvolve, com quem se relaciona, quem faz a cooptação e que é cooptado. E para onde foram os “manifestantes anticorrupção”? Percebi (veja, sabia em teoria, agora percebi, senti, é diferente, é mais impactante, não tem como esquecer com simples bebedeira) que esse estado de coisas não se refere somente a esta questão, mas a todos os ritos institucionais do Poder Público para com a população. Em outras palavras, encontra-se esse estado de coisas em qualquer lugar da prefeitura, sem exceção, em qualquer escola, posto de saúde, secretaria e departamento. E percebi, além disto, que quem usufrui do patrimônio, digamos assim, é a mesma classe daqueles que bradavam contra a corrupção e contra a PEC 37. E, de repente, depois desta constatação visual, sensitiva e comparativa, digamos assim, atravessou um raio em minha cabeça: Ribeirão Preto é uma cidade de porte médio, de certa forma, as pessoas se conhecem. Eu conheço praticamente todos que vivem na região onde moro, que é a maior e a mais populosa da cidade, a famigerada zona norte, onde as balas não são de borracha. Pensei: provavelmente, muitos dos que bradavam contra a corrupção, por mais saúde e educação, são conhecidos, pelo menos de vista, dos que vivem do patrimônio.

Veja, Ribeirão Preto não é tão grande assim, comparar com Jardinópolis não vale e se autoproclamar São Paulo do interior muito menos, sem megalomania; quando alguém sai para algum lugar, é provável que encontre as mesmas pessoas e/ou pessoas parecidas; e todos que empunhavam os cartazes evasivos vão aos shoppings nesta cidade, aos parques da zona sul, às boates e bares de bom nome, aos mercados de importados, aos mesmos lugares comuns, porque Ribeirão Preto, convenhamos, não é tão grande assim e é sem graça, não possui cena cultural decente, não possui museus, não possui teatros pujantes. Então eu concluo: talvez alguns, veja, alguns, sejam colegas, amigos, parentes, digam oi quando tiram o carro da garagem daquelas casas sem muro, ou encontram-se no elevador dos prédios ondem moram, sei lá. Talvez, alguns até tenham algum negócio em comum, por que não?

E aí vem o insight. Quando a pauta tornou-se municipal, ficou impossível para essa classe continuar nas manifestações. Cobrar diretamente abertura da planilha dos custos de tarifa de ônibus (às vezes esqueço que este pessoal não pega ônibus nem por decreto), exigir que pais e alunos participem das decisões da escola, que a comunidade discuta a política de saúde no bairro, analisar quanto é repassado pela prefeitura, estado e união para estas instituições, cobrar as indicações políticas nestas instituições, ninguém quer ou se propõe. Há um jogo político implícito para quase todos: reclamar significa não subir na hierarquia na qual está submetido. Significa fazer inimigos, estabelecer confrontos e constrangimentos. Está além do querer ser comissionado, ainda que muitos o queiram (sou servidor público municipal e encontro aos montes gente capaz de qualquer coisa para subir na hierarquia do serviço público). Está na perspectiva segundo a qual é melhor as coisas continuarem como estão porque corporativamente é mais seguro, no mínimo, ou se refere à necessidade vital da reprodução familiar, pois vive indiretamente do patrimônio, não somente como servidor concursado ou comissionado, mas também como prestador de serviço (ou alguém da família) da prefeitura. Há ainda os que simplesmente foram acostumados a nunca entrar em conflito, restando mandar praga para quem está muito distante (Palácio da Alvorada, Congresso Nacional, Palácio dos Bandeirantes e Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo – o último coloquei por correção, porque ninguém por estas bandas sabe o que é este negócio, e um tal de deputado estadual).

Quando o negócio era gritar contra a corrupção, por mais saúde, educação e blá blá blá, de forma bastante enviesada e vazia, contra os governos federal, principalmente, e estadual, esporadicamente, todos estavam lá. Quando o movimento começou, por motivos óbvios e coerentes, a centrar-se na relação entre empresas privadas e prefeitura, especialmente a relação entre Consórcio PróUrbano e Prefeitura/Câmara dos Vereadores de Ribeirão Preto, esses que são contra o plebiscito e contra a corrupção (quem não é?) fugiram, com raras exceções. Por quê? Porque não questionam a saúde municipal, a educação municipal e o transporte municipal (convenhamos, são serviços municipalizados há muito tempo na cidade, por mais que a União e o Estado tenham também importância, sobretudo orçamentária e indutora)? Por que esse pessoal não vai à porta da prefeitura gritar que quer melhor educação municipal, melhor saúde municipal e melhor transporte municipal? Por que esse pessoal não vai à escola, ao posto, à sede do consórcio e à Câmara dos Vereadores gritar por melhores serviços, por abertura das contas, de todos, das escolas, dos postos, das empresas e dos vereadores? 


A resposta é simples: terá que mostrar a cara, ficar frente a frente, face to face, sem máscaras ou anonimato do facebook ou da distância. Convenhamos, xingar alguém que está a 1000 Km de distância, como a presidenta ou a 300 Km de distância, como o governador, pode ser correto, mas também é fácil. Xingar a prefeita, ou o comissionado, ou o empresário de frente, olho no olho, a poucos metros, é, no mínimo, mais "complicadinho"... Ribeirão Preto é uma cidade que não possui setor industrial minimamente desenvolvido. Uma fração significativa da classe média ribeirãopretana vive à custa do Poder Público Municipal, seja prestando serviços diretamente, como servidores concursados ou comissionados, seja pertencente à rede de comércio e serviços, normalmente prestando serviços à prefeitura, como empreiteiras, alimentos, remédios etc. etc. Puxe pela memória, veja o círculo familiar, de amigos, de vizinhos... você encontrará muita gente que vive, de alguma forma, direta ou indiretamente, do dinheiro do Poder Público Municipal. Em alguns casos, nada contra, mas explicitemos.

Qual é o medo do povo votar e decidir o que quer? O medo refere-se a si próprios. Seriam os que se opõem ao plebiscito os mesmos que acham a população incapaz de participar das decisões da escola, do posto de saúde, etc., até porque muitos trabalham na prefeitura, e o contrário significaria modificar os ritos de seu local de trabalho? Seriam os mesmos que reproduzem visão corporativa e conservadora, que fazem de tudo para que as coisas nunca mudem, porque simplesmente nunca mudar é mais seguro? Seriam os mesmos que acham que a população não pode reclamar, pedir e exigir absolutamente nada, caso contrário configurar-se-ia em desacato segundo alguma lei afixada nas paredes de todas as repartições públicas? Seriam estes os mesmos que vivem de dinheiro público (alguns através da famosa "meritocracia", é verdade, mas o fato é que o salário que recebem vem dos impostos, pagos em grande parte pela parcela da população que não pode decidir, votar, xingar, reclamar e exigir nada, segundo os meritosos)? O povo votar em algo consiste em uma ação proibitiva na visão dos que vivem do patrimônio, parafraseando Ricardo Antunes.

Leio muito agora um argumento que quer se fazer lógico. Não queremos gastar R$ 500 milhões em plebiscito. Nossa, quanta bobagem. Peguemos Ribeirão Preto como exemplo. Qual é a dívida da prefeitura, de prazos curto, médio e longo? As escolas estão recebendo corretamente os repasses orçamentários, alguns inclusive rubricados pela União? Há prestação de contas das repartições públicas? A comida servida às crianças está normal (e preste atenção aqui, porque os que vivem do patrimônio normalmente não possuem filhos na escola pública, e talvez filhos dos outros seja a mesma coisa que pimenta no ...)? Há médicos nos postos? Há equipamentos? Os repasses estão corretos? Está tudo ok? Se fizermos a conta, são muito mais do que R$ 500 milhões de vazio e dívida aqui em Ribeirão Preto, não!? Dizem por aí que a tarifa de ônibus está errada, pois a planilha entregue ao Ministério Público está errada. Será que extorquiram a população, empresa e Prefeitura/Câmara dos Vereadores? Por que não vejo esse pessoal contra o plebiscito e a corrupção, que quer mais saúde, educação e transporte ser contra a esse status quo no município e ir para a rua, exigir melhor educação municipal, melhor saúde municipal e melhor transporte municipal? Seria porque simplesmente ir à rua consistiria em um ato contra o status quo que usufruem, um status quo que, de alguma forma, vem ou pelo menos tem “melhor saúde” em função do acesso fácil ao patrimônio? Por que não vejo a mesma ênfase em ser contrário às indicações políticas na escola? Afinal, todo o sistema político da cidade está fundamentado no sistema de comissionamento, todos sabem disto. Isto não é uma forma de corrupção, tanto de quem indica quanto de quem aceita quanto de quem assiste? Não seria corrupto aqueles que ignoram a essa situação e preferem, em detrimento da realidade imediata, ficar pendurado na bengala da corrupção nacional? Afinal, o município pertence à nação, e talvez esta seja a conclusão derradeira do cinismo dos grupos anticorrupção, bradar contra a corrupção nacional e (des)perbecer a corrupção municipal como se o município não pertencesse à República Federativa do Brasil.

Realmente creio que vivemos tempos de extrema complexidade social e política, porque são tempos que exigem a sinceridade de todos, ainda que a vontade dirija-se ao cinismo e à hipocrisia. O fato é que a posição contrária ao plebiscito da maioria das pessoas, aliada ao cinismo de suas vidas, expressa o patrimonialismo alicerçado na ideia segundo a qual a população está em estado de eterna ignorância – população que não tem acesso ao patrimônio, enfatizemos. É a mesma posição dos senhores de terra e de escravos que defendiam o voto censitário no século XIX, ou a mesma de quem defendia, até às portas de 1988, que analfabeto não tivesse direito ao voto. A oposição ao plebiscito da forma que se consubstanciou nos discursos não consiste simplesmente em uma defesa dos ritos constitucionais, se é que existem (ei reeleição!), mas no apego das normas das casas congressuais a fim de negar a possibilidade de escolha à população, a mesma escolha que é negada cotidianamente nos ritos institucionais do Estado no trato para com a população. No caso, a constituição tornou-se meio, e desde já peço desculpas cínicas aos constitucionalistas, mas a constituição sempre foi meio para qualquer “debate”, e sempre será usada como meio, por mais que defendam a constituição como fim ou a democracia representativa como valor universal.


É óbvio que se pode se opor ao plebiscito e ser um “sujeito anticorrupção”, mas convenhamos, em tempos de sinceridade como a que vivemos, nada como fundamentar um pouco melhor o que nos motiva à oposição, explicitando para todos e para si a sua real motivação, como se estivéssemos à frente de um espelho sem as roupas de um alferes, simplesmente nus.


L. F. S.